terça-feira, 19 de junho de 2012

Em nome do pai



Thiago Araújo sobrevoa memórias e fala do pai que, praticamente, não conheceu. O menino tinha apenas dois anos de idade quando Torquato Neto partiu. Por telefone, ele conversou com o Vida & Arte.

Thiago Araújo é filho único de Torquato Neto. Herdou do pai a semelhança física, um certo jeito de olhar, a inquietação ao falar, a dificuldade para dormir. E foi ser piloto. Voa há 16 anos. 

De poesia, não gosta e diz que nem entende. ''Hereditário é doença não é talento'', costuma responder. Mas gosta de saber do poeta Torquato, ler seus escritos, ouvir amigos contando histórias. Formas de transpôr a distância do tempo. 

Hoje, Thiago mora um pouco em Fortaleza, um pouco no Rio de Janeiro. Esta semana, ele estava lá e a conversa teve que ser por telefone. (Sílvia Bessa) 

O POVO - Você tem alguma lembrança do seu pai? 

Thiago Araújo - Bom, lembrança eu não tenho porque quando ele morreu eu tinha dois anos. Mas tem uma cena só que eu não sei se lembrei do tanto que me disseram ou se me lembro mesmo... A lembrança que tenho construí depois dos 16 anos de idade, foi quando fui entender um pouco como é que ele era. Uma professora do colégio, numa aula de literatura, falou do meu pai, contou várias histórias e eu falei: sou filho dele. Ela achou genial, sentou comigo depois da aula e falou horas. Depois disso fui me interessando e construindo a imagem que tenho hoje dele. Até hoje leio muito.

OP - Havia muita cobrança das pessoas que conheciam teu pai? O filho do Torquato ter que ser inquieto, poeta, cineasta, artista. 

TA - Isso tem até hoje. Outro dia mesmo, um amigo que trabalha comigo falou ''Pô cara, você é filho do Torquato? Que legal! Você não escreve poesia?' Como eu sempre digo, hereditário é doença não é talento! Não vou me meter no que não sei. A herança foi só física, eu acho.

OP - As pessoas reconhecem que você é filho do Torquato pela semelhança física? 

TA - Aconteceu várias vezes, em bar, no meio da rua... Há pouco tempo Jards Macalé falou comigo porque lembrou meu pai. ''Você é filho do Torquato? É muito parecido com ele!'. ''De fato sou''. Acontece muito. Ainda mais depois que saiu essa coletânea (Todo dia é dia D). Tem uma foto interna que nem eu conhecia, dá pra ver que somos muito parecidos.

OP - Como é que foi em casa. Vocês falavam em casa sobre o Torquato? 

TA - Acho que pelo fim trágico que houve, minha mãe evitou falar assim até uma certa idade, sabe? Era uma forma de proteção. Ela só veio a falar depois de um certo tempo e ainda assim porque procurei saber. Também vim a saber dele através dos amigos que continuaram freqüentando a minha casa, da minha mãe (Ana Maria Duarte), depois que ele morreu. Era um bando de maluco, umas figuras bem loucas. 

OP - Quem, por exemplo? 

TA - Tipo Damião Experiença, um oficial da Marinha que caiu uma vez de cima de um mastro com a testa no convés do navio, se aposentou e virou artista. Era muito amigo do meu pai. Ele grava uns CDs por uma gravadora chamada Planeta Lama, que ele sozinho vende nas calçadas. Meu pai tinha uma característica interessante que minha mãe contou: tinha uns amigos que só ele conseguia aturar, só ele gostava, ninguém conseguia suportar as pessoas e ele era muito amigo. Então, eu me lembro muito dessas figuras que eram muito diferentes dos pais dos meus amigos de colégio. Final de semana eu ia pra casa de um amigo meu e achava tudo meio careta, mesmo sem saber direito o que era ser careta ou não.

OP - Teu pai nasceu no Piauí, morou um bom tempo na Bahia, e depois foi pro Rio de Janeiro. Você nasceu no Rio mas tem alguma identificação com o Nordeste? 

TA - Claro que tenho. Minha mãe é baiana, meu pai piauiense e eu morei aí, ainda moro um pouco.

OP - Você visitava Fortaleza quando era criança. Vinha para casa de amigos da sua mãe. Em que momento decidiu vir morar aqui? 

TA - Eu sempre fui a Fortaleza desde pequenininho. Até pela proximidade com Teresina, quando eu ia passar férias lá, passava por aí.

OP - Você tinha esse contato próximo com seus avós? Passava as férias em Teresina? 

TA - Quando eu era pequeno, não sei se por exigência dos meus avós, era obrigado (risos), mas como eu não conseguia ficar um mês em Teresina dava um jeito de fugir para Fortaleza. Hoje, eu moro meio aí, meio aqui. Mas eu sempre fui a Teresina.

OP - Seu pai passou por Fortaleza? 

TA - Acho que não. Eu não tenho certeza mas nunca vi nenhuma referência sobre isso. Nas várias matérias que venho juntando há muito tempo nunca citaram que ele tenha estado em Fortaleza. Ele ia muito a Salvador. Tinha uma relação forte com a Bahia e com o Rio, que era pra onde a turma vinha naquela época porque era aqui que as coisas aconteciam naquele tempo. Hoje, nem tanto mais.

OP - Mas ele sempre voltava pra Teresina. 

TA - Quando ele ficava inquieto, a primeira coisa que fazia era voltar pra Teresina. Um lugar onde ele se acalmava. Talvez pelo ambiente de casa, não sei exatamente o porquê. Mas nas crises era a primeira coisa que ele fazia. 

OP - Você se acha parecido com ele? 

TA - Outro dia a minha mãe falou: ''Impressionante essa coisa que você tem do seu pai''. Tenho uns amigos que todos acham insuportáveis, mas eu adoro, acho eles maravilhosos. Meu pai era a mesma coisa. E também sou inquieto o tempo todo, tenho dificuldade pra dormir.

OP - Seu pai tinha momentos de muito recolhimento, de entrar no mundo dele pra procurar um equilíbrio. 

TA - É isso eu não tenho não. Mas sabe uma coisa: embora ele tivesse essas coisas de loucura que tinha, todo mundo sempre fala que ele era uma pessoa extremamente amável, carinhoso. Acho que isso eu não sou muito, sou mais frio, distante. Mas várias pessoas citam que ele gostava de abraçar os outros. Meu avô também é assim.

OP - O Doutor Heli? 

TA - É. Se passa criança na rua, ele levanta pra dar um beijo sem nem saber quem é, coloca no chão e continua andando.

OP - Teu pai foi um dos pensadores da Tropicália. E foi um excelente letrista. Isso influenciou de alguma forma teu gosto musical? 

TA - Desde adolescente, eu sempre gostei de Caetano Veloso mas porque era o que eu escutava em casa. Era só o que tinha em casa. Meus amigos escutavam muita coisa de rádio FM naquele tempo e eu achava chatíssimo, gostava de escutar Transa, do Caetano. Escutava Jimi Hendrix muito antes da idade em que todo mundo começa a escutar. E coisas de literatura... literatura de vanguarda, revista Pólen, umas coisas de poesia que tinha lá em casa que eu ficava folheando quando era pequeno sem saber o que era direito. Tinha uma foto lá em casa do meu pai vestido de vampiro em Copacabana no meio da rua e o Wally Salomão vestindo um barril com duas alças. Tinha isso na sala! Se eu não me engano era um pôster que vinha nas páginas centrais de uma revista. Cresci achando essas coisas normais.

OP - Tinha outras coisas do teu pai espalhadas pela casa? 

TA - Minha mãe tinha muito jornal, as colunas dele, as coisas que ele produzia. E na casa dos meus avós em Teresina tinha muita foto dele. Como ele era filho único, era foto pela casa inteira. Coisa de mãe, né? Parecia que lá eu ficava convivendo com ele. Minha mãe guardava mais essa parte do trabalho. Era como se os dois lados se complementassem.

OP - Em relação à literatura, você se interessa pelo trabalho do seu pai? 

TA - Desde cedo eu tive contato com poesia de vanguarda e não entendia nada, achava sem pé nem cabeça. Aí eu cresci e continuei sem me interessar muito.

OP - Você é piloto há quanto tempo? 

TA - Espera aí. (Faz um pouco de silêncio) Caramba! É isso mesmo. Tive que contar de novo porque pensei que estava errado. Mas são 16 anos. Comecei com 16. Comecei curso de pilotagem aos 15 e comecei a voar com 16 e estou trabalhando na Varig há 12 anos.

OP - O que você mais gosta na profissão? 

TA - Eu sempre gostei de aviação, embora não goste muito de viajar. Ao contrário da maioria que escolhe a profissão pelo fato de estar sempre em um outro lugar, eu não gosto muito disso. Tanto que a melhor época da minha vida foi quando eu trabalhei na ponte aérea Rio-São Paulo e dormia todo dia em casa. Essa história de estar dormindo em hotel, arrumando e desarrumando mala não faz muito a minha, não. O meu sonho é morar em Fortaleza, fazendo a ponte aérea Fortaleza-Jijoca-Fortaleza (risos). Nunca consegui me identificar com uma profissão tradicional. Pra desespero da minha avó por parte de pai que queria que eu fosse - acho que por causa do filho que foi a primeira decepção dela - engenheiro, doutor ou advogado.

OP - Você está ajudando de alguma forma o Toninho Vaz, que está fazendo a biografia do seu pai? 

TA - Estou. Ele fez a biografia do Paulo Leminski que ficou muito legal: O Bandido que sabia latim. Excelente. Não sei em que parte ele está mas sei que está em andamento. A vontade dele é compreender como uma pessoa que morreu tão nova, como meu pai, pode até hoje ser tão falada. Como uma pessoas viveu tão pouco e produziu tanto. (...) Eu estava aqui procurando o livro Os Últimos Dias de Paupéria que eu tenho e acabei de descobrir que ele se encontra aí em Fortaleza. Às vezes tem disso, eu quero pegar um negócio e está aí em Fortaleza. Eu queria encontrar para ler umas passagens que acho fantásticas. São textos que ele escreveu quando fazia os auto-exílios em Teresina, no Meduna. Era um hospício onde ele se auto-internava.

TRECHOS
''10/10
(...)
Pela primeira vez estou sentindo de fato o que pode ser uma prisão. Aqui, as portas que dão para as duas únicas saídas existentes, estão permanentemente trancadas - e há uma pequena grade em cada uma delas, de onde se pode ver os corredores que dão para as outras galerias. Depois delas, uma espécie de liberdade. Não se fica trancado em celas aqui dentro: é permitido passear até rachar por um corredor de aproximadamente 100 metros por 2,5 de largura. Somos 36 homens aqui dentro, 36 malucos, 36 marginais - de qualquer maneira esperamos a ''cura'' no sanatório como a sociedade espera que os bandidões das cadeias se ''regenerem'' etc, etc. Aqui, o carcereiro é chamado de plantonista - e são aqueles homens de branco sobre os quais Rogério se referiu um dia, há pouco tempo. Aqui, nesta vida comunitária, a barra é pesada, como eu gosto. Minha enfermaria tem 12 camas ocupadas por doentes mentais de nível que poderia muito bem ser classificado pelo IBOPE como pertencentes às classes C, D, Z. Estamos aí! Em cana. O chato é a comida, que é péssima''

''13/10

Eu: pronome pessoal e intransferível. Viver: verbo transitório e transitivo, transável, conforme for. A prisão é um refúgio: é perigoso acostumar-se a ela. E o dr. Oswaldo? Não exclui a responsabilidade de optar, ou seja:?''


Trechos de Os Últimos Dias de Paupéria, de Torquato Neto. 


Entrevista publicada no jonal O Povo, de Fortaleza - CE, no dia 9 de novembro de 2004.
 

Um comentário:

  1. Que legal saber que Torquato Neto tem um filho. Sou sobrinha de um amigo dele e não sabia desse fato. Torquato me pegou no colo no Rio, onde morávamos. Sempre ia lá em casa. Uma pena e não lembrar. Sei disso pq minha mãe conta. Somos tbém de Teresina!!
    Amei a entrevista!!

    ResponderExcluir