terça-feira, 19 de junho de 2012

Em nome do pai



Thiago Araújo sobrevoa memórias e fala do pai que, praticamente, não conheceu. O menino tinha apenas dois anos de idade quando Torquato Neto partiu. Por telefone, ele conversou com o Vida & Arte.

Thiago Araújo é filho único de Torquato Neto. Herdou do pai a semelhança física, um certo jeito de olhar, a inquietação ao falar, a dificuldade para dormir. E foi ser piloto. Voa há 16 anos. 

De poesia, não gosta e diz que nem entende. ''Hereditário é doença não é talento'', costuma responder. Mas gosta de saber do poeta Torquato, ler seus escritos, ouvir amigos contando histórias. Formas de transpôr a distância do tempo. 

Hoje, Thiago mora um pouco em Fortaleza, um pouco no Rio de Janeiro. Esta semana, ele estava lá e a conversa teve que ser por telefone. (Sílvia Bessa) 

O POVO - Você tem alguma lembrança do seu pai? 

Thiago Araújo - Bom, lembrança eu não tenho porque quando ele morreu eu tinha dois anos. Mas tem uma cena só que eu não sei se lembrei do tanto que me disseram ou se me lembro mesmo... A lembrança que tenho construí depois dos 16 anos de idade, foi quando fui entender um pouco como é que ele era. Uma professora do colégio, numa aula de literatura, falou do meu pai, contou várias histórias e eu falei: sou filho dele. Ela achou genial, sentou comigo depois da aula e falou horas. Depois disso fui me interessando e construindo a imagem que tenho hoje dele. Até hoje leio muito.

OP - Havia muita cobrança das pessoas que conheciam teu pai? O filho do Torquato ter que ser inquieto, poeta, cineasta, artista. 

TA - Isso tem até hoje. Outro dia mesmo, um amigo que trabalha comigo falou ''Pô cara, você é filho do Torquato? Que legal! Você não escreve poesia?' Como eu sempre digo, hereditário é doença não é talento! Não vou me meter no que não sei. A herança foi só física, eu acho.

OP - As pessoas reconhecem que você é filho do Torquato pela semelhança física? 

TA - Aconteceu várias vezes, em bar, no meio da rua... Há pouco tempo Jards Macalé falou comigo porque lembrou meu pai. ''Você é filho do Torquato? É muito parecido com ele!'. ''De fato sou''. Acontece muito. Ainda mais depois que saiu essa coletânea (Todo dia é dia D). Tem uma foto interna que nem eu conhecia, dá pra ver que somos muito parecidos.

OP - Como é que foi em casa. Vocês falavam em casa sobre o Torquato? 

TA - Acho que pelo fim trágico que houve, minha mãe evitou falar assim até uma certa idade, sabe? Era uma forma de proteção. Ela só veio a falar depois de um certo tempo e ainda assim porque procurei saber. Também vim a saber dele através dos amigos que continuaram freqüentando a minha casa, da minha mãe (Ana Maria Duarte), depois que ele morreu. Era um bando de maluco, umas figuras bem loucas. 

OP - Quem, por exemplo? 

TA - Tipo Damião Experiença, um oficial da Marinha que caiu uma vez de cima de um mastro com a testa no convés do navio, se aposentou e virou artista. Era muito amigo do meu pai. Ele grava uns CDs por uma gravadora chamada Planeta Lama, que ele sozinho vende nas calçadas. Meu pai tinha uma característica interessante que minha mãe contou: tinha uns amigos que só ele conseguia aturar, só ele gostava, ninguém conseguia suportar as pessoas e ele era muito amigo. Então, eu me lembro muito dessas figuras que eram muito diferentes dos pais dos meus amigos de colégio. Final de semana eu ia pra casa de um amigo meu e achava tudo meio careta, mesmo sem saber direito o que era ser careta ou não.

OP - Teu pai nasceu no Piauí, morou um bom tempo na Bahia, e depois foi pro Rio de Janeiro. Você nasceu no Rio mas tem alguma identificação com o Nordeste? 

TA - Claro que tenho. Minha mãe é baiana, meu pai piauiense e eu morei aí, ainda moro um pouco.

OP - Você visitava Fortaleza quando era criança. Vinha para casa de amigos da sua mãe. Em que momento decidiu vir morar aqui? 

TA - Eu sempre fui a Fortaleza desde pequenininho. Até pela proximidade com Teresina, quando eu ia passar férias lá, passava por aí.

OP - Você tinha esse contato próximo com seus avós? Passava as férias em Teresina? 

TA - Quando eu era pequeno, não sei se por exigência dos meus avós, era obrigado (risos), mas como eu não conseguia ficar um mês em Teresina dava um jeito de fugir para Fortaleza. Hoje, eu moro meio aí, meio aqui. Mas eu sempre fui a Teresina.

OP - Seu pai passou por Fortaleza? 

TA - Acho que não. Eu não tenho certeza mas nunca vi nenhuma referência sobre isso. Nas várias matérias que venho juntando há muito tempo nunca citaram que ele tenha estado em Fortaleza. Ele ia muito a Salvador. Tinha uma relação forte com a Bahia e com o Rio, que era pra onde a turma vinha naquela época porque era aqui que as coisas aconteciam naquele tempo. Hoje, nem tanto mais.

OP - Mas ele sempre voltava pra Teresina. 

TA - Quando ele ficava inquieto, a primeira coisa que fazia era voltar pra Teresina. Um lugar onde ele se acalmava. Talvez pelo ambiente de casa, não sei exatamente o porquê. Mas nas crises era a primeira coisa que ele fazia. 

OP - Você se acha parecido com ele? 

TA - Outro dia a minha mãe falou: ''Impressionante essa coisa que você tem do seu pai''. Tenho uns amigos que todos acham insuportáveis, mas eu adoro, acho eles maravilhosos. Meu pai era a mesma coisa. E também sou inquieto o tempo todo, tenho dificuldade pra dormir.

OP - Seu pai tinha momentos de muito recolhimento, de entrar no mundo dele pra procurar um equilíbrio. 

TA - É isso eu não tenho não. Mas sabe uma coisa: embora ele tivesse essas coisas de loucura que tinha, todo mundo sempre fala que ele era uma pessoa extremamente amável, carinhoso. Acho que isso eu não sou muito, sou mais frio, distante. Mas várias pessoas citam que ele gostava de abraçar os outros. Meu avô também é assim.

OP - O Doutor Heli? 

TA - É. Se passa criança na rua, ele levanta pra dar um beijo sem nem saber quem é, coloca no chão e continua andando.

OP - Teu pai foi um dos pensadores da Tropicália. E foi um excelente letrista. Isso influenciou de alguma forma teu gosto musical? 

TA - Desde adolescente, eu sempre gostei de Caetano Veloso mas porque era o que eu escutava em casa. Era só o que tinha em casa. Meus amigos escutavam muita coisa de rádio FM naquele tempo e eu achava chatíssimo, gostava de escutar Transa, do Caetano. Escutava Jimi Hendrix muito antes da idade em que todo mundo começa a escutar. E coisas de literatura... literatura de vanguarda, revista Pólen, umas coisas de poesia que tinha lá em casa que eu ficava folheando quando era pequeno sem saber o que era direito. Tinha uma foto lá em casa do meu pai vestido de vampiro em Copacabana no meio da rua e o Wally Salomão vestindo um barril com duas alças. Tinha isso na sala! Se eu não me engano era um pôster que vinha nas páginas centrais de uma revista. Cresci achando essas coisas normais.

OP - Tinha outras coisas do teu pai espalhadas pela casa? 

TA - Minha mãe tinha muito jornal, as colunas dele, as coisas que ele produzia. E na casa dos meus avós em Teresina tinha muita foto dele. Como ele era filho único, era foto pela casa inteira. Coisa de mãe, né? Parecia que lá eu ficava convivendo com ele. Minha mãe guardava mais essa parte do trabalho. Era como se os dois lados se complementassem.

OP - Em relação à literatura, você se interessa pelo trabalho do seu pai? 

TA - Desde cedo eu tive contato com poesia de vanguarda e não entendia nada, achava sem pé nem cabeça. Aí eu cresci e continuei sem me interessar muito.

OP - Você é piloto há quanto tempo? 

TA - Espera aí. (Faz um pouco de silêncio) Caramba! É isso mesmo. Tive que contar de novo porque pensei que estava errado. Mas são 16 anos. Comecei com 16. Comecei curso de pilotagem aos 15 e comecei a voar com 16 e estou trabalhando na Varig há 12 anos.

OP - O que você mais gosta na profissão? 

TA - Eu sempre gostei de aviação, embora não goste muito de viajar. Ao contrário da maioria que escolhe a profissão pelo fato de estar sempre em um outro lugar, eu não gosto muito disso. Tanto que a melhor época da minha vida foi quando eu trabalhei na ponte aérea Rio-São Paulo e dormia todo dia em casa. Essa história de estar dormindo em hotel, arrumando e desarrumando mala não faz muito a minha, não. O meu sonho é morar em Fortaleza, fazendo a ponte aérea Fortaleza-Jijoca-Fortaleza (risos). Nunca consegui me identificar com uma profissão tradicional. Pra desespero da minha avó por parte de pai que queria que eu fosse - acho que por causa do filho que foi a primeira decepção dela - engenheiro, doutor ou advogado.

OP - Você está ajudando de alguma forma o Toninho Vaz, que está fazendo a biografia do seu pai? 

TA - Estou. Ele fez a biografia do Paulo Leminski que ficou muito legal: O Bandido que sabia latim. Excelente. Não sei em que parte ele está mas sei que está em andamento. A vontade dele é compreender como uma pessoa que morreu tão nova, como meu pai, pode até hoje ser tão falada. Como uma pessoas viveu tão pouco e produziu tanto. (...) Eu estava aqui procurando o livro Os Últimos Dias de Paupéria que eu tenho e acabei de descobrir que ele se encontra aí em Fortaleza. Às vezes tem disso, eu quero pegar um negócio e está aí em Fortaleza. Eu queria encontrar para ler umas passagens que acho fantásticas. São textos que ele escreveu quando fazia os auto-exílios em Teresina, no Meduna. Era um hospício onde ele se auto-internava.

TRECHOS
''10/10
(...)
Pela primeira vez estou sentindo de fato o que pode ser uma prisão. Aqui, as portas que dão para as duas únicas saídas existentes, estão permanentemente trancadas - e há uma pequena grade em cada uma delas, de onde se pode ver os corredores que dão para as outras galerias. Depois delas, uma espécie de liberdade. Não se fica trancado em celas aqui dentro: é permitido passear até rachar por um corredor de aproximadamente 100 metros por 2,5 de largura. Somos 36 homens aqui dentro, 36 malucos, 36 marginais - de qualquer maneira esperamos a ''cura'' no sanatório como a sociedade espera que os bandidões das cadeias se ''regenerem'' etc, etc. Aqui, o carcereiro é chamado de plantonista - e são aqueles homens de branco sobre os quais Rogério se referiu um dia, há pouco tempo. Aqui, nesta vida comunitária, a barra é pesada, como eu gosto. Minha enfermaria tem 12 camas ocupadas por doentes mentais de nível que poderia muito bem ser classificado pelo IBOPE como pertencentes às classes C, D, Z. Estamos aí! Em cana. O chato é a comida, que é péssima''

''13/10

Eu: pronome pessoal e intransferível. Viver: verbo transitório e transitivo, transável, conforme for. A prisão é um refúgio: é perigoso acostumar-se a ela. E o dr. Oswaldo? Não exclui a responsabilidade de optar, ou seja:?''


Trechos de Os Últimos Dias de Paupéria, de Torquato Neto. 


Entrevista publicada no jonal O Povo, de Fortaleza - CE, no dia 9 de novembro de 2004.
 

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Tropicalismo para principiantes



Um filme, chamado “Bonnie and Clyde” está fazendo agora um tremendo sucesso na Europa. E com uma força tão grande que sua influência estendeu-se à moda, à música, à decoração, às comidas e aos menores hábitos das pessoas. São os anos trinta que estão sendo revividos. Bem por dentro dessa história e à procura de um movimento pop autenticamente brasileiro, um grupo de intelectuais reunidos no Rio – cineastas, jornalistas, compositores, poetas e artistas plásticos – resolveu lançar o Tropicalismo. O que é? 

Assumir completamente tudo o que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido. Eis o que é.

Porta-voz do tropicalismo, por enquanto. É o jornalista e compositor Nelson Motta, que divulgou essa semana, num vespertino carioca, o primeiro manifesto do movimento. E fazem parte dele, entre outros: Caetano Veloso, Rogério Duarte, Gilberto Gil, Nara Leão, Glauber Rocha, Carlos Diégues, Gustavo Dhal, Antônio Dias, Chico Buarque, Valter Lima Jr. e José Carlos Capinam. 

Muitas adesões estão sendo esperadas de São Paulo e é possível que Rogério Duprat, Júlio Medaglia e muita gente mais (os irmãos Haroldo e Augusto, Renato Borghi etc.) tenham suas inscrições efetuadas imediatamente. O papa do Tropicalismo – e não poderia faltar um – pode ser José Celso Martinez Correa. Um deus do movimento: Nelson Rodrigues. Uma musa: Vicente Celestino. Outra musa: Gilda de Abreu. 

O Tropicalismo, ou Cruzada Tropicalista, pode ser lançado qualquer dia desses numa grande festa no Copacabana Palace. A piscina estará repleta de vitórias-régias e a pérgula enfeitada com palmeiras de todos os tipos. Uma nova moda será lançada: para homens, ternos de linho acetinado branco, com golas bem largas e gravatas de rayon vermelho; as mulheres devem copiar antigos figurinos de Luiza Barreto Leite ou Iracema de Alencar. Em casa, nada de decorações moderninhas, rústicas ou coloniais. A pedida são móveis estofados em dourado e bordô, reproduções de Osvaldo Teixeira e Pedro Américo, bibelôs de louça e camurça, retratos de Vicente Celestino, Emilinha Borba e Cézar de Alencar. Nada de Beatles, nada de Rolling Stones. E muitos pufes, centenas de almofadas. 

O Dia das Mães, o Natal e o reveillon do jaguar serão as grandes festas do Tropicalismo, que exige eventos e efemérides. 25 de agosto é data importantíssima. E ninguém perderá uma parada de 7 de Setembro. Desfile de escolas de samba (em cadeiras numeradas) e o baile do Municipal são obrigatórios. Revistas de Gomes Leal, shows de Carlos Machado e filmes de Mazzaropi serão assuntos discutidíssimos. Cinerama também. Um ídolo: Wanderley Cardoso. Uma cantora: Marlene. Um intelectual: Alcino Diniz. Um poeta: J.G. de Araújo Jorge. Um programa de TV: Um Instante Maestro. Uma canção: “Coração Materno”. Um gênio: Chacrinha. 

E daí para a frente. Aliás, os líderes do Tropicalismo anunciam o movimento como super-pra-frente: 

- É brasileiro, mas é muito pop. 

O que, no fundo, é uma brincadeira total. A moda não deve pegar (nem parece estar sendo lançada para isso), os ídolos continuarão os mesmos – Beatles, Marilyn, Che, Sinatra. E o verdadeiro, grande Tropicalismo estará demonstrado. Isso, o que se pretende e o que se pergunta: como adorar Godard e Pierrot Le Fou e não aceitar “Superbacana”? Como achar Felinni genial e não gostar de Zé do Caixão? Porque o Mariaaschi Maeschi é mais místico do que Arigó? 

Tropicalismo pode responder: porque somos um país assim mesmo. Porque detestamos o Tropicalismo e nos envergonhamos dele, do nosso subdesenvolvimento, de nossa mais autêntica e imperdoável cafonice. Com seriedade.

Esse texto está contido no livro "Torquatália: do lado de dentro" de organização de Paulo Roberto Pires, todavia essa versão foi retirada do site Tropicalia.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

vida e morte de torquato neto*


André Monteiro**
escorpião, veneno delicado
traços ternos e tesos de guerreiro apaixonado
escorpião, água de entranha
seu segredo sua ferida saída
precisa sina de anjo torto
negra solidão do cosmos
não se trai em sua própria traição
todo dia é dia D
amar-te amor-te morrer
entre hades e ares
o arco aflito do corpo fala com o fogo e o frio na língua
e não encontra palavra
escorpião:
o fim é o início da linha da mão

escorpião é o signo de minha mãe
minha mãe é o signo de escorpião
o signo é o escorpião de toda vida
a vida é o escorpião de todo signo

* ...09 de novembro de 1944 & 10 de novembro de 1972...
__________
**André Monteiro nasceu em São João Del Rei, Minas Gerais e é pós-doutor em literatura pela PUC-Rio e professor de Literatura Brasileira na UFJF. Publicou A ruptura do escorpião: Torquato Neto e o mito da marginalidade (2000) e Ossos do ócio (2001), ambos pela Editora Cone Sul. Participou ainda como co-autor dos livros Antologia Massa-Nova (Fortaleza), Caos Portátil (México) e Livro de Sete Faces (Juiz de Fora).
Poema publicado incialmente no blog Géleia Geral #001

quinta-feira, 15 de março de 2012

Explicação do fato II

Também tenho uma noite em mim tão escura
que nela me confundo e paro
e em adágio cantabile pronuncio
as palavras da nênia ao meu defunto,
perdido nele, o ar sombrio.
(Me reconheço nele e me apavoro)
Me reconheço nele,
não os olhos cerrados, a boca falando cheia,
as mãos cruzadas em definitivo estado, se enxergando,
mas um calor de cegueira que se exala dele
e pronto: ele sou eu,
peixe boi devolvido à praia, morto,

[Torquato Neto]
exposto à vigilância dos passantes.
Ali me enxergo, à força no caixão do mundo
sem arabescos e sem flores.
Tenho muito medo.
Mas acordo e a máquina me engole.
E sou apenas um homem caminhando
e não encontro em minha vestimenta
bolsos para esconder as mãos, armas, que, mesmo frágeis,
me ameaçam.
Como não ter medo?
Uma noite escura sai de mim e vem descer aqui
sobre esta noite maior e sem fantasmas.
como não morrer de medo se esta noite é fera
e dentro dela eu também sou fera e me confundo nela e
ainda insisto?
Não é viável.
Nem eu mesmo sou viável, e como não? Não sou.
O que é viável não existe, passou há muito tempo
e eram manhãs e tardes e manhãs com sol e chuva
e eu menino.
eram manhãs e tardes e manhãs sem pernas
que escorriam em tardes e manhãs sem pernas
e eu sentado num tanque absurdamente posto no meio da rua,
menino sentado sem a preocupação da ida.
E era todo dia.
Havia sol
e eu o sabia
sol: era de dia
Havia uma alegria
do tamanho do mundo
e era dia no mundo.
Havia uma rua
(debaixo dum dia)
e um tanque.
Mas agora é noite até no sol.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Explicação do fato I

Impossível envergonhar-me de ser homem.
Tenho rins e eles me dizem que estou vivo.
Obedeço a meus pés
e a ordem é seguir e não olhar à frente.
Minúsculo vivente entre rinocerontes
me reconheço e falho
e insisto.
E insisto porque insistir é minha insígnia.
O meu brasão mostra dois pés escalavrados
e sobram-me algumas forças: sei-me fraco
e choro.
E choro e nem assim me excedo na postura humana:
sofro o corpo inteiro, pendo e não procuro
a arma em minhas mãos.
Sei que caminho. É só.
Joelhos curvam-se, amaziam ao chão que queima
e me penetra e eu decido que não posso
envergonhar-me de ser homem.
A criança antiga é dique barrando o meu escôo
e diz que não, não me envergonhe.
Não me envergonho.
Tenho rins mãos boca orgão genital e
glândulas de secreção interna:
impossível.
No entanto sinto medo
e este é o meu pavor.
Por isso a minha vida, como o meu poema,
não é canto, é pranto
e sobre ela me debruço
observando a corcunda precoce
e os olhos banzos.

(Torquato Neto)

A volta do poeta da geléia geral

Carlos Ávila*

Dois alentados volumes trazem de volta a obra dispersa do poeta, letrista e jornalista Torquato Neto (1944-1972). Sob o título geral de "Torquatália”, os dois livros apresentam os subtítulos "Do Lado de Dentro" e "Geléia Geral".

O primeiro reúne poemas, letras de canções, textos de manifestos, correspondências e um diário; o segundo, basicamente, todo o trabalho jornalístico de Torquato realizado no Rio de Janeiro: os textos sobre música popular escritos no extinto "Jornal dos Sports", uma breve passagem pelo suplemento “Plug” do também extinto "Correio da Manhã" e, finalmente, a famosa coluna "Geléia Geral", publicada na "Última Hora". A competente organização de "Torquatália" é do professor Paulo Roberto Pires, da Escola de Comunicação da UFRJ, autor de uma esclarecedora introdução e responsável também pelas notas e pela cronologia final.

Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu em Teresina, no Piauí, em 9 de novembro de 1944. Estudou em Salvador e seguiu depois para o sul, onde viveu no eixo Rio-São Paulo, trabalhou como jornalista e participou do movimento de renovação da música popular brasileira, unindo-se a compositores como Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Capinam e outros.

Com espírito questionador e aguçada consciência crítica, Torquato foi um poeta de seu tempo, um tempo um tanto sombrio sob a ditadura militar que sufocava o país. Nesse período conturbado da vida brasileira, marcado simultaneamente pela repressão política e pela grande criatividade (é a época dos teatros Arena e Oficina, da arte ambiental de Hélio Oiticica, dos festivais de MPB, do cinema de Glauber Rocha e depois dos "marginais" Bressane e Sganzerla, da redescoberta de Oswald de Andrade pelos poetas concretos etc.), o poeta compôs algumas canções marcantes, onde palavra & som se integram à perfeição: "Geléia Geral", com Gilberto Gil; "Mamãe Coragem", com Caetano Veloso, e "Let’s Play That", com Macalé. Torquato foi um dos mais radicais integrantes do tropicalismo, um movimento que propunha, segundo ele, num texto da época (1968), "assumir completamente tudo o que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar da cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido". Ou seja, uma grande mistura estética (Chacrinha e Oswald de Andrade; guitarra elétrica e berimbau; concretismo e cordel; Godard e Zé do Caixão; Stockhausen e Vicente Celestino; altos e baixos repertórios) e um comportamento irreverente e anticonvencional.

No final de 1968, pouco antes da decretação do AI-5, Torquato parte para a Europa juntamente com Hélio Oiticica. No retorno ao Brasil, já afastado dos antigos companheiros tropicalistas, volta à agitação cultural através da coluna "Geléia Geral" (mesmo título da canção, extraído de um manifesto do poeta Décio Pignatari, na revista "Invenção": "na geléia geral brasileira alguém tem de exercer as funções de medula e osso").

Na coluna, publicada no jornal carioca "Última Hora", Torquato atacou a institucionalização do cinema novo, o que acabou levando à sua participação ativa em filmes “udigrúdis” rodados em super-8 por Luiz Otávio Pimentel e Ivan Cardoso. Torquato atuou como vampiro, por exemplo, em "Nosferatu no Brasil". "Um vampiro ensolarado, malandro e desinibido, tropicalizado em cores berrantes, para inveja de seus cinzentos colegas dos castelos dos Cárpatos", na descrição do poeta e crítico Haroldo de Campos. O poeta piauiense também projetou e coordenou a edição única da revista "Navilouca" -uma publicação que buscava aliar toda uma nova produção de poetas, cineastas e artistas plásticos, como Waly Salomão, Ivan Cardoso, Hélio Oiticica, Lígia Clark, Rogério Duarte, Chacal, Duda Machado etc. aos trabalhos dos poetas concretos de São Paulo, Augusto & Haroldo de Campos e Décio Pignatari -mas não conseguiu vê-la editada em vida (a revista só sairia em 1974).

Sua trajetória artístico-vivencial foi rápida e acidentada, incluindo polêmicas e rompimentos, muito álcool (o poeta se submeteu a várias internações) e drogas, até seu final trágico, o suicídio na madrugada do dia 10 de novembro de 1972, depois da festa de aniversário numa boate no Rio.

A obra de Torquato, dispersa por jornais e revistas, mais algum material inédito, foi resgatada postumamente no volume "Os Últimos Dias de Paupéria", organizado pelo poeta Waly Salomão e por Ana Maria Duarte -artista gráfica e mulher de Torquato (a primeira edição saiu pela editora Eldorado, do Rio, em 1973; a segunda edição, revista e ampliada, pela paulista Max Limonad, em 1982). "Torquatália" reproduz o conteúdo das edições anteriores e acrescenta outras produções do poeta piauiense.

No primeiro volume -"Do lado de dentro"- chamam atenção, particularmente, os "inéditos de juventude", a ampliação do "cancioneiro" (revelando outras letras e parcerias) e a intensa correspondência estabelecida com Hélio Oiticica.



Os poemas e textos sobre cinema, os cadernos com anotações e o diário -escrito num hospital psiquiátrico no Engenho de Dentro (RJ)- já haviam sido incluídos em "Os Últimos Dias de Paupéria". Na cronologia final, Paulo Roberto Pires informa que havia também um caderno, hoje perdido, com anotações sobre uma experiência-limite de Torquato: durante um mês, ele tomou LSD todos os dias e registrou suas impressões.

Os poemas da juventude de Torquato, escritos entre 1961 e 1962, que estavam guardados na casa de seus pais e só agora são publicados, apontam para futuros procedimentos em sua obra. Há neles, ainda que embrionariamente, o gosto pelas citações, o diálogo intertextual (leia-se, por exemplo, o poema intitulado "Tema", que cita e comenta o emblemático "José", de Carlos Drummond de Andrade -aliás, uma forte influência em todo o trabalho de Torquato), o tom crítico, a ironia e a sátira, e até sinais do lirismo desencantado de sua fase final.

A ampliação do "cancioneiro", com letras de canções desconhecidas, várias inclusive não gravadas, é interessante, mas não apresenta grandes lances criativos no nível de uma "Geléia Geral" ou de uma "Mamãe Coragem", composições antológicas e mais conhecidas de Torquato. Já a correspondência "casada" com Hélio Oiticica é surpreendente, forma todo um painel de época.

Escritas entre 1971 e 1972, as cartas retratam um período rico e tumultuado: Oiticica numa Nova York elétrica e vanguardista, no auge de seu experimentalismo estético; Torquato, ao contrário, num Rio de Janeiro sombrio, sob a ditadura militar, "completamente perdido depois de um ano na Europa (1968-69), rompido com os tropicalistas, em busca de um rumo profissional e acumulando frustrações" -segundo o organizador do volume.

Questões variadas afloram nesse diálogo epistolar, como a formatação de uma imprensa alternativa no país e a querela cinema novo versus cinema marginal. Uma curiosidade: a última carta foi enviada por Torquato de Teresina, onde esteve internado no Sanatório Meduna. Arte & vida, vida & arte estão coladas e são indissociáveis nessa instigante correspondência. No segundo volume -"Geléia Geral"- está agrupada a produção jornalística de Torquato, ou seja, as colunas que ele assinou na grande imprensa do Rio. Pela primeira vez são reunidos os textos da coluna "Música Popular", da fase inicial de Torquato, então com apenas 23 anos, publicados no "Jornal dos Sports".



Ali está registrada toda a movimentação da geração pós-Bossa Nova (Chico Buarque, Caetano, Gil, Capinam, Edu Lobo, Paulinho da Viola etc.), da qual Torquato fazia parte, ou seja, um período bastante criativo da música popular brasileira, época de festivais da canção e véspera da explosão tropicalista. As colunas são basicamente informativas, com uma série de pequenas notas sobre gravações e lançamentos de discos, shows e programas de TV; às vezes, pequenas entrevistas com seus pares contemporâneos.

Em geral, são textos bem simples e diretos, nos quais já despontam algumas opiniões polêmicas (como uma crítica ao compositor Ataulfo Alves, da velha guarda) que anunciam ao longe o tom mais contundente da "Geléia Geral". Na passagem brevíssima pelo suplemento “Plug” (apenas três textos, em junho de 1971), Torquato migra para a área do cinema e inicia uma cruzada crítica ao cinema novo de Glauber Rocha & companhia; é a época da Embrafilme e do seu contraponto audiovisual: o cinema marginal de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane.

Em agosto de 1971, Torquato iniciou a sua última participação na grande imprensa carioca, com a coluna "Geléia Geral", na "Última Hora". Esses textos também já haviam sido reunidos na segunda edição de "Os Últimos Dias de Paupéria" -reproduzidos novamente em "Torquatália", revelam a face mais radical do poeta/letrista em tempos pós-tropicalistas.

No pequeno espaço da coluna, Torquato aprofunda as críticas ao cinema novo e promove as produções marginais de Sganzerla e Bressane -juntamente com as alternativas em super-8 (esta bitola era a grande novidade naquele momento) de Ivan Cardoso. Abre espaço também para o pensamento estético de Oiticica, revela novos poetas (Waly, Chacal) e músicos (Luiz Melodia, Carlos Pinto), batalha por uma política limpa e correta em relação aos direitos autorais, reproduz textos e traduções de Augusto & Haroldo de Campos e de Décio Pignatari. Mas não deixa de noticiar e comentar intensamente os lançamentos e novidades da música popular brasileira, com destaque para o grupo baiano (Caetano, Gil e Gal Costa).

A coluna "Geléia Geral" funcionou como um verdadeiro "respiradouro" em meio à censura e repressão que se abateram sobre a imprensa e a arte produzida no período militar no Brasil. Era um enclave alternativo na grande imprensa, um ruído em meio ao marasmo e ao conformismo, ainda a ser devidamente avaliado e estudado.

Sempre se encontra aqui e ali algum material disperso de Torquato, através de pesquisas em arquivos e consultas a estudiosos e colecionadores. "Torquatália", com seus dois alentados volumes, ampliou bastante a reunião dos escritos do poeta piauiense, hoje tema de teses e monografias na área acadêmica.

Poderiam ter sido incluídos também, por exemplo, os textos escritos para as contracapas do primeiro LP de Gil, "Louvação" (onde Torquato afirma que "há várias maneiras de se cantar e fazer música brasileira, Gilberto Gil prefere todas") e para o pouco conhecido e nunca relançado LP "Gil-Chico-Veloso por Claudete Soares", com arranjos de Rogério Duprat.

Poderiam ser incluídos também os textos dispersos pelas páginas do tablóide baiano "Verbo Encantado", um deles sobre Luiz Melodia; as letras de "Sem essa aranha" (parceria com Carlos Galvão e gravação de Lena Rios, num compacto da antiga Philips) e "Um dia desses eu me caso com você" (parceria e gravação de Paulo Diniz); as entrevistas à revista "Amiga" (juntamente com Sérgio Ricardo, Marcus Vinícius e Renato Rocha) e ao jornal "Opinião", em 1971; os 17 fragmentos poéticos inéditos publicados pela revista cearense "Araia Pajéurbe", juntamente com uma entrevista do pai do poeta, dr. Heli, etc.

Enfim, não é possível incluir tudo. Dois pequenos reparos à edição: faltou informar que Nara Leão também gravou "Mamãe Coragem" e que as composições "Que Película" e "Quase Adeus" não ficaram inéditas, mas foram gravadas por Nonato Buzar num vinil da RCA Victor, em 1970.

"Torquatália" reapresenta o poeta piauiense às novas gerações, com excelente contextualização no espaço e no tempo. Os dois volumes montam um retrato possível do "torto" Torquato, criatividade e sensibilidade à flor da pele; resgatam com grandeza a vida-obra -dispersa e fragmentada em palavras, sons e imagens- do "menino infeliz" de Teresina.

*É poeta e jornalista, autor de "Bissexto sentido" e "Poesia pensada", entre outros.

Resenha publicada, inicialmente, no site Trópico.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

cogito



eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.

(Torquato Neto)

Torquato, uma figura em pedaços

José Castello


A vida breve, mas fecunda, de Torquato Neto (1944-1972) é uma síntese da grandeza, mas também dos abismos que definem a cultura alternativa e rebelde dos anos 60 e 70. Mais importante pensador do movimento da Tropicália, letrista, poeta, cineasta, ator, Torquato ganha, mais de três décadas depois de seu enigmático suicídio, uma bela biografia, assinada por Toninho Vaz (“Pra mim chega/ A biografia de Torquato Neto”, Editora Casa Amarela).

Como discípulo fiel do mito alternativo, Torquato tinha como ideal destruir o mundo para, nesse mesmo gesto, fazer o parto de um novo. Uns poucos se lembram do empenho, da identificação secreta, com que ele representou o papel de Adão no curta-metragem em super 8 “Adão e Eva, do Paraíso ao Consumo”, produção marginal de oito minutos cujos negativos se extraviaram. É emblemática, e mais conhecida, a altivez com que ele aparece, ao lado de Gal Costa, na capa do LP “Tropicália”.

Em sua festa de 28 anos, comemorada em um bar da Usina, no Rio de Janeiro, o amigo João Rodolfo do Prado, na época editor da “Última Hora” (jornal em que, entre 1971 e 72, Torquato Neto assinou a famosa coluna Geléia Geral) também o viu com o carisma de um iluminado. “Torquato estava messiânico, dando conselhos e distribuindo tarefas”, relata ao biógrafo Vaz. “Ele estava fazendo uso de uma lógica própria, como se estivesse mergulhado num mundo inatingível.”

Mais objetivo, Toninho Vaz prefere assinalar que “é provável que Torquato estivesse fazendo uso de cocaína”. Outra testemunha, o jornalista Luís Carlos Maciel, prefere pensar em uma “viagem” de LSD. Como diz o próprio biógrafo, já não importa saber “qual a substância química que o poeta usou na sua despedida”. Na madrugada seguinte ao aniversário, de volta de uma ronda pelas boates da zona sul, Torquato se trancou no banheiro, ligou o gás e esperou a morte. Foi encontrado só na manhã seguinte, pela empregada Maria da Graça.

Antes disso, em um caderno espiral, ele rabiscou um bilhete enigmático: “Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Pra mim, chega! Não sacudam demais o Thiago que ele pode acordar.” Thiago era seu filho de 3 anos, que dormia num quarto ao lado. Às 9 horas da manhã, Torquato Pereira de Araújo, neto (assim mesmo, com uma vírgula no nome) foi considerado oficialmente morto.

Poeta da ruptura

Entre os últimos textos rabiscados no caderno, havia uma frase isolada, atribuída a Caetano Veloso: “O amor é imperdoável”. Do mais belo, Torquato conseguia tirar o mais horrendo. Por isso, o mais importante na equilibrada biografia de Toninho Vaz é que ele não se deixa convencer nem pelo santo, nem pelo monstro. Encontra os dois dentro do mesmo Torquato e, se depara então com uma figura em fragmentos, a responsabilidade não é sua, mas de seu biografado.

Torquato Neto foi, como Vinicius de Moraes, um poeta para quem a poesia vazava na vida. Não é por outro motivo que é autor de um livro único, “Os Últimos Dias de Paupéria”, só editado após sua morte. Deixou mais de 30 letras de música, assinadas com parceiros célebres como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo e Jards Macalé. E um diário do sanatório do Engenho de Dentro, onde passou uma das várias internações a que se submeteu, para tratar não só do excesso de álcool e drogas, mas também de uma depressão crônica.

Toninho Vaz não tenta juntar os cacos desse poeta despedaçado, tampouco impor uma ordem de valor aos fragmentos que recolhe. “Poeta da ruptura”, como Torquato preferia se ver, sob forte influência não só de seus companheiros da Tropicália, como Rogério Duprat, José Carlos Capinam, Nara Leão e Tom Zé, mas também dos cineastas do Cinema Marginal e ainda dos poetas concretos de São Paulo. E, não menos, de artistas inquietos e radicais como o diretor de teatro José Celso Martinez Correa e o pintor Hélio Oiticica.

Mais do que na obra, diz o biógrafo, “a importância de Torquato Neto vai aparecer naquilo que ele fez e disse”. Em outras palavras: naquilo que viveu. Transportando a poesia para a vida, como fez Vinicius, Torquato se transformou em um mito que, como todo mito, fascina, mas também afasta. “Eu sei o que significa um mito, mas se alguém me perguntar vou entrar em pânico e não vou conseguir responder”, resume Vaz, citando Santo Agostinho.

Como os artistas da vanguarda, Torquato tinha dois grandes inimigos: as idéias preconcebidas e o “medo paralisador”. “Quero ir muito além do que já foi feito”, ele repetia. Um poeta cujo projeto era colocar-se a perigo, sempre disposto a enfrentar novas dificuldades e novos obstáculos. A contradição que carregava vinha de berço. Seu pai, Heli Nunes, era espírita kardecista e membro da maçonaria, enquanto a mãe, Salomé, uma católica fervorosa, uma típica beata.

O filho por eles gerado teve um nascimento difícil. Salomé tinha a bacia estreita e, no parto, como relata Vaz, “o bebê foi retirado a fórceps de dentro da mãe, durante uma batalha sangrenta que durou mais de uma hora”. Um movimento brusco do médico provocou um ferimento na cabeça do bebê. D. Salomé passou mais de um ano em tratamento para curar-se das seqüelas daquele nascimento. Torquato nunca deixou de se ver como filho de um trauma.

Vagabundagem inspirada


Foi um menino tímido que, desde cedo, ainda nos bancos escolares, já lia os poetas Castro Alves, Olavo Bilac, Fagundes Varela, Gonçalves Dias. Aos 14 anos, descobriu Machado de Assis. Em 1959, seguindo os passos de outro poeta piauiense, Mário Faustino, decidiu cursar o científico em Salvador. Não podia imaginar a opulência que o esperava. A Salvador do início dos anos 60 vivia grande agitação cultural. Lina Bo Bardi, Joaquim Koellreutter e Glauber Rocha eram só as figuras mais nobres num cenário em que surgia, como diz Vaz, “uma arte agressiva e de vanguarda”. A capital baiana se transformara, diz o biógrafo citando Roberto Rosselini, em uma “Roma negra”.

Mas Torquato ainda não ficou satisfeito. Aos 17 anos, ele se transferiu para o Rio. Foi morar com um tio, Jonathan, no suspeitíssimo edifício Rajah, na praia de Botafogo, e estudar numa escola que, como se dizia, era uma “boate”, isto é, tinha péssima fama, o Colégio Ruy Barbosa. Fez o vestibular para jornalismo, mas não terminou o curso, e começou a trabalhar nas redações da cidade. Na mesa de um bar, o botequim Mau Cheiro, no Arpoador, conheceu sua futura mulher, Ana. Ao lado de amigos como Caetano Veloso e Jards Macalé, começou a viver o que seu biógrafo define como “uma vagabundagem inspirada”.

A festa acabou, ou pelo menos se politizou, com o golpe militar de 1964. A partir dali, a felicidade passou a estar, sempre, ligada à angústia. “Sou um homem triste”, ele escreveu em carta a um amigo, “sinto que sou um homem destinado à latrina”. A fúria vanguardista e a realidade vazia se alternavam à sua frente, ou eram o avesso e o direito de uma mesma experiência. Torquato tinha o porte de um anjo. Aos 21 anos, muito magro, estava com 1,74 metro, mas pesava só 60 quilos. “Eu lembro dele como um sujeito inquieto, muito agitado e algumas vezes dispersivo”, diz ao biógrafo o compositor Edu Lobo.

Era um radical, cada vez mais aferrado a seus preceitos estéticos, atitude expressa em frases assim: “Não se pode matar o príncipe e deixar vivo o princípio”. Como o regime militar também se radicalizava, porém, as vanguardas terminaram partidas ao meio. De um lado, ficaram os engajados, como o poeta José Carlos Capinam; de outros, os alternativos, como Torquato. “Era o momento da ruptura, o ponto extremo da forquilha, quando cada grupo deveria procurar o seu canto no ringue”, diz Vaz, resumindo aqueles tempos.

Nesse turbilhão, surge a Tropicália, movimento que não desejava aderir “nem à MPB pura, nem ao ié-ié-ié”. O ideal dos tropicalistas não podia ser mais ambicioso: buscavam uma mudança radical nos valores. “Eu sou como eu sou/ pronome/ pessoal intransferível/ do homem que iniciei/ na medida do impossível”. O impossível era tudo o que pediam.

Contudo, o marco do movimento tropicalista, alerta Toninho Vaz, não está na música, mas em uma exposição do artista Hélio Oiticica, realizada em abril de 1967, no MAM. Ela se baseava nos princípios de um manifesto, assinado pelo pintor, chamado “Nova Objetividade”. O crítico Mario Pedrosa resumiu assim a caótica doutrina: “um exercício experimental da liberdade”. Torquato, em particular, tinha obsessão em se livrar do já feito, para chegar ao osso das coisas e, como dizia, à verdade. “Assim como Oswald de Andrade, ele tentava enunciar quatro verdades em três linhas”, diz Vaz. “Estava nascendo o mito do escriba maldito e destemido, empunhando a pena justiceira e, mais uma vez, destoando o coro dos contentes”, diz o biógrafo. Como num filme de Luis Buñuel, cineasta na moda, surgia um anjo exterminador.

Um péssimo presságio


Torquato se batia, ferozmente, contra a ditadura, contra a indústria fonográfica, contra o conformismo, contra a arte engajada e “inocente” de um Geraldo Vandré. Mas não parava de beber e de se drogar. “Analisando hoje, posso ver como ele se autodestruía”, recorda o empresário Guilherme Araújo. Com a quilométrica letra de “Geléia geral”, que seria transformada em hino do Tropicalismo, Torquato consegue fixar os princípios de suas idéias rebeldes. Aquela letra, no dizer de outro poeta, Paulo Leminski, já apontava para o “poeta das elipses desconcertantes, dos inesperados curto-circuitos, mestre da sintaxe descontínua, que caracteriza a modernidade”.

Em 1968, o ano das grandes convulsões sociais, Torquato, com sua altivez de aristocrata - como observou Zé Celso - apresenta uma perturbadora, e de certo modo humilde, definição do Tropicalismo: “a ausência de consciência da tragédia em plena tragédia”. Em um artigo no suplemento “O Sol”, sem disfarçar a postura de guru, ele escala a nobreza da Tropicália. Zé Celso seria o papa, Chacrinha o gênio, Gilda de Abreu a musa, e Nelson Rodrigues ninguém menos que deus.

Se havia obstinação e exagero, havia também desesperança e melancolia. “No fundo, é uma brincadeira total”, o poeta escreve em outro artigo, expondo seu pessimismo crônico. “A moda não deve pegar, os ídolos continuarão sendo os mesmos.” Cabelos compridos, roupas ao estilo hippie e uma invejável bagagem artística, Torquato parecia então, nas palavras de Gilberto Gil, “um daqueles meninos de Buñuel, devotos de Lourdes, ou de Fátima”. A busca radical o aproximava da santidade.

Chegaria o momento em que, depois de um desentendimento doloroso com Caetano Veloso, Torquato começou a se afastar da Tropicália. Veio a Passeata dos Cem Mil, a peça “Roda Viva”, a agitação nas ruas, e a paisagem se radicalizou ainda mais. Torquato ainda tentava resistir, mesmo em atos isolados, como quando dirigiu o especial “Vida, paixão e banana do Tropicalismo” para a TV Globo. No elenco, o cantor Vicente Celestino se aborreceu quando, numa seqüência em que se evocava a Santa Ceia, com Gilberto Gil como Jesus Cristo, o pão sagrado foi substituído por uma banana. Ofendido, Celestino abandonou o teatro das gravações, entrou num táxi e desapareceu na cidade. “Horas depois, ele morria de infarto num quarto do hotel Normandie, onde estava morando”, relata Vaz. Era um péssimo presságio.

Quando o AI-5 foi decretado, Torquato estava a salvo em um cargueiro dos correios britânicos, atravessando o Atlântico, a caminho da Europa. “Vou embora porque alguma coisa vai explodir por aqui”, ele disse aos amigos que o levaram ao porto. Estava certo. Logo depois, Caetano e Gil seriam presos, teriam cabelos e barba raspados, se tornando mártires da resistência cultural. Torquato, por sua vez, viveu uma difícil temporada em Londres, onde a mulher, Ana, foi encontrá-lo.

De Londres, mudou-se para Paris. Passaria, ao todo, um ano na Europa. Quando retornou enfim ao Brasil, já no início de 1970, o país era outro. E ele também. “Seu aspecto físico também era outro”, recorda Toninho Vaz. “Ele estava, digamos, mais louco, cabeludo e atrevido - para não dizer agressivo e afetado.” Tempos depois, na luta contra a depressão cada vez mais intensa, o poeta se internou no sanatório do Engenho de Dentro, o mesmo que projetou a imagem da dra. Nise da Silveira. Na ala masculina, ao lado de 35 pacientes, foi tratado com doses fortes do calmante Mutabon D. Via-se, provavelmente, como um Antonin Artaud dos trópicos.

Em seus perturbadores diários de manicômio, ele expõe idéias assim: “Deus está solto e foi Caetano quem gritou primeiro. Posso reconhecê-lo em seus disfarces.” Discretamente, ou em prontuários particulares, os médicos falavam em “esquizofrenia”. Quando enfim terminou a internação, Torquato resolveu viajar para uma temporada de repouso em Teresina, que duraria três meses. Já não seria o bastante. Nada mais bastava.

De volta ao Rio, o cineasta Ivan Cardoso o escalou para o elenco de “Nosferato”, um longa-metragem em Super 8. Torquato seria o próprio Nosferato. “Ele tinha muita identificação com os vampiros, não gostava de claridade e era elegante como um conde da nobreza”, justificou, mais tarde, o cineasta. Sempre desassossegado, Torquato Neto ainda tramaria o lendário almanaque “Navilouca”, que teve um único número. Foi o último clarão, logo depois o desejo de morte venceria.

Artigo publicado incialmente no Jornal de Poesia.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Paulo Leminski e Torquato Neto: dois "kamiquases" *

Fabrício Marques de Oliveira


Concomitante ao seu surgimento na cena cultural e artística brasileira em fins dos anos 60, o tropicalismo trouxe consigo um redemoinho em cujo epicentro se desdobraram as mais diversas polêmicas. Estas, no entanto, eram guiadas numa só direção: o imperativo de falar do país. Nesse contexto, algumas perguntas aparecem: que é arcaico? Que é moderno? Qual música é erudita, e qual a popular? Deve-se trabalhar apenas com as raízes nacionais ou incorporar, além disso, as manifestações artísticas extrínsecas? A Tropicália coloca essas questões sob suspeita, relativizando-as e redimensionando-as. Ao lado delas, discute-se também a possibilidade de a canção ser, ao mesmo tempo, crítica e inserção no mercado. Isso porque, como assinala Celso Favaretto, “se por um lado, a atividade artística se realiza inevitavelmente segundo a ordem do mercado, por outro, não deixa de se afirmar como tentativa de transformação da sensibilidade, das convenções, dos comportamentos” 1. O tropicalismo não só trouxe a reboque um redemoinho, como foi uma “explosão colorida” que submeteu, antropofagicamente, a tradição musical, a ideologia do desenvolvimento e o nacionalismo populista a um processo de desconstrução, como lembra Favaretto. Respirava-se, então, os ares sufocados dos anos de chumbo pós-golpe militar de 64, tempos de forte polarização ideológica.

O movimento tropicalista teve grande importância na obra poética do autor de Caprichos e relaxos. Com a Tropicália, foi possível ver que “o centro da poesia se deslocou do livro para a música popular. (...) Com a geração que produziu Caetano e Chico, viu-se deslocar o pólo da poesia, do suporte livro para o suporte disco” 2, o que significa que a palavra escrita pode aprender com a palavra falada. E que a contribuição dos grandes mestres da poesia brasileira foi e é grandiosa, mas não é suficiente. É preciso algo mais. Como diz Nelson Ascher,

...quem quer que tenha vivido a idade formativa dos 60 para cá e tenha pretensões poéticas, soube de poesia, antes de mais nada, sob a forma de música popular. Pode-se aprender com Bandeira, Drummond, Cabral, Murilo, mas quem deu a corda foi a MPB, para mais de uma geração, e através dela. Torquato e seus contemporâneos, correligionários, cúmplices. 3


Em determinados poemas de Leminski, transferidas para o plano da linguagem poética, encontram-se as marcas que vão definir a atividade tropicalista, de acordo com Celso Favaretto: “relação entre fruição estética e crítica social, em que esta se desloca do tema para os processos construtivos”; articulação de “uma nova linguagem da canção a partir da tradição da mpb e dos elementos que a modernização fornecia”, elaborando uma síntese de música e poesia, de melodia e texto; na justaposição de elementos diversos da cultura, a obtenção de “uma suma cultural de caráter antropofágico”; “operação desmistificadora, efetuada através da mistura de elementos contraditórios, privilegiando o elemento crítico”; “construções paródico-alegóricas (imagens tropicais); "crítica da musicalidade e autocrítica" 4.

Um outro dado que se faz presente na Tropicália (e que levaria o Leminski-tropicalista a afirmar, num texto de Anseios crípticos: “fui dos primeiros, em Curitiba, a usar blusão vermelho e deixar o cabelo crescer” 5) é valorizado pela poeta Ana Cristina César, que nela vê “ a expressão de uma crise, uma opção estética que inclui um projeto de vida, em que o comportamento passa a ser elemento crítico, subvertendo a ordem mesma do cotidiano”. Continua a poeta:

O 'desvio pós-tropicalista' apresenta uma ambiguidade básica: por um lado valoriza-se a marginalidade urbana, a liberação erótica, a experiência das drogas, a atitude festiva, e por outro, verifica-se uma constante atenção a certos referenciais do sistema e da cultura consagrada, como o rigor técnico, a preocupação com a competência na realização de obras, a valorização do bom acabamento dos produtos culturais. 6


Dentro da Tropicália, movimento em torno do qual se uniram artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, um dos nomes fundamentais foi o de Torquato Neto. E talvez este seja, dentro do movimento, o nome que mais se aproxime de Paulo Leminski. Torquato e Leminski foram “kamiquases”, cada um a seu modo. Uma primeira aproximação com o autor de Geléia Geral pode ser este breve perfil traçado por Décio Pignatari:

Era um criador-representante da nova sensibilidade dos não-especializados. Um poeta da palavra escrita que se converteu à palavra falada (...). Torquato foi o Mário Faustino do Tropicalismo, o Mário tragicamente morto dez anos antes. Ambos, mortos vocacionais. 7


Em mais de uma oportunidade, Leminski demonstrou suas afinidades e admirações para com Torquato, como nesses dois depoimentos:

Torquato é um caso à parte. De longe, a melhor prosa desta geração. Sua prosa supera a de Oswald de Andrade. A agilidade, a exatidão, o teor de novidade em tudo, a eletricidade: não conheço nada melhor que Os últimos dias de Paupéria, que têm que ser para nós os primeiros dias de uma riqueza muito grande. 8

Existem alguns tipos de prosa brasileira, é a prosa de Torquato, uma prosa elétrica, mas é uma prosa na linguagem. Quer dizer, trata-se de uma prosa opaca como a poesia, uma prosa densa de informação como a poesia. Uma prosa que transcenda assim a mera denotação e atinja o status de objeto de arte. 9


Prosa elétrica, encharcada de novidade, densa de informação: textos para jornais, poemas e letras de música reunidos em Os últimos dias de Paupéria, título dado por Waly Salomão. Paupéria sendo uma “região de parcas pecúnias de Pindorama”, a expressão do “miserabilismo terceiro-mundista. Pindaíba” 10. Os últimos dias, referência direta à “reiterada anunciação da morte pessoal”.

Para Torquato, coroas de Leminski:

um dia as fórmulas fracassam
a atração dos corpos cessou
as almas não combinam
esferas se rebelam contra a lei das superfícies
quadrados se abrem
dos eixos
sai a perfeição das coisas feitas nas coxas
abaixo o senso de proporções
pertenço ao número
dos que viveram uma época excessiva 11



Torquato e Leminski se aproximam também pelo fato de ambos desfrutarem de um gosto por expressões de linguagens populares. Leminski era estudioso e colecionador de provérbios e invenções verbais populares, como lembra Régis Bonvicino, que vê o Catatau como engendrado e articulado a partir do “corriqueiro provérbio” 12. Já Torquato “era um amante recolhedor das jóias do pensamento de pára-choque de caminhão”, segundo Waly Salomão 13. Torquato flertou com o concretismo, de maneira mais explícita, no poema A matéria o material -3 estudos de som, para ritmo. Além disso, publicou no espaço interdisciplinar que era a sua coluna Geléia Geral, no jornal Última Hora (1971-1972), entre assuntos que iam do cinema à música, da literatura às artes plásticas, (que traziam, entre outros, e dando conta da diversidade, os nomes de Oswald de Andrade, Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Ângela Maria, Roberto Carlos), traduções de poemas de Li T'Ai Po, Dante e Maiakóvski feitas por Augusto de Campos.

De certa forma, a atuação multimídia de Leminski, principalmente entre meados dos anos 70 até 89 (ano de sua morte), seja como tradutor, seja atuando como agitador cultural, ou mesmo aparecendo em programas televisivos, parece pôr em prática um dos postulados básicos veiculados por Torquato Neto na sua coluna diária, como se depreende dos trechos seguintes:

E agora? Eu não conheço uma resposta melhor do que esta: vamos continuar. E a primeira providência continua sendo a mesma de sempre: conquistar espaço, tomar espaço, ocupar espaço. Inventar os filmes, fornecer argumentos para os senhores historiadores que vão pintar.

O que eu chamo de "ocupar espaço" está, de certa maneira, naquele Teorema de Pasolini. Ocupar espaço, num limite de tradução, quer dizer tomar o lugar. Não tem nada a ver com subterrânea (num sentido literal), e está mesmo pela superfície, de noite e com muito veneno. (...) Ocupar espaço, criar situações. Ocupa-se um espaço vago como também se ocupa um lugar ocupado: everywhere. 14


Eram frases imperativas, ordens do dia, numa realidade no “meio-termo desgraçado entre o sufoco político e cotidiano, a destruição do ambiente cultural e as solicitações da contracultura”. Um estreitamento do qual a imagem "ocupar espaço" procurava dar conta, já que também a “sobrevivência era dura e magra” 15. A proposta de Leminski — para ser poeta é preciso ser mais do que poeta — trava relação, em seu fulcro, com estas palavras de Torquato:

Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada no bolso ou nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso. 16


Era necessário incorporar, existencialmente, a poesia, e nisso vai menos um toque idealista-romântico do que uma constatação melancólica, assim traduzida por Leminski, numa carta a Régis Bonvicino: “fazer poemas não é a coisa mais importante/ mas para quem faz é/ e tem que ser assim” 17.

Outra confluência entre Leminski e Torquato, notada por José Miguel Wisnick:

Torquato pertence a uma linha de poetas que alcançaram grande fluidez entre a poesia escrita e a poesia cantada. Em sua obra única, a poesia e a canção se correspondem sem serem separadas por uma fronteira de níveis de densidade. Vinícius anunciou primeiro esse trânsito entre a poesia e a canção, mas nele ainda está marcada a distinção entre as duas. Torquato avança por esse campo aberto, por onde circularão depois poetas como Leminski e Cacaso. 18


Esse trânsito livre entre poesia falada e escrita tem uma conotação nostálgica, “poesia de volta às origens: no início, poesia era canção. O ser da poesia só se explica, geneticamente, pela sua origem como letra de música, porque ela estava ligada com a esfera musical” 19. Decorre daí uma passagem, na produção poética de Leminski, do valor espaço para o valor tempo. O primeiro se ocupa da plasticidade, da disposição da palavra na página, com a materialidade da palavra impressa na página, enquanto que o segundo se liga ao aspecto musical. Há um determinado momento, em sua poesia, que o interesse se transfere para a cadência da fala, a poesia se torna mais caudalosa. O registro da escrita é dado no tempo, na substância fugaz da voz, na música, no grão da voz barthesiano, como evidencia o seguinte poema:

Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Sôo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva,
para ir do percalço ao espasmo. (LVEC, p.18) 20



São descendentes diretos dessa influência ligada à música e, em especial, ao tropicalismo, versos como esses, nos quais prepondera a melopéia, que Régis Bonvicino viu como sendo “melodias escritas com harmonias sintáticas irreverentes (...) onde o sentido vai se dando pelo encantamento sincopado do som" 21:

Condenado a ser exato
quem dera poder ser vago
fogo fátuo sobre um lago
ludibriando igualmente
quem voa, quem nada, quem mente,
mosquito, sapo, serpente. (LVEC, p.23)



Há textos de Leminski que poderiam exemplificar sua filiação à Tropicália, exemplos de tropicalismo tout court, como é o caso de desmontando o frevo (CER, p.16), você/ que a gente chama (CER p.56), ou mesmo para que leda me leia (DV, p.62) (chamo de textos porque são mais letras de música do que propriamente poemas no sentido estrito). Inclusive, o poeta chega a fazer um convite para que o leitor também musique uma das letras (para que leda me leia), além de abrir assim seu livro de estréia: “Aqui, (...) poemas para dizer, em voz alta. E poemas, letras, lyrics, para cantar. Quais, quais, é com você, parceiro”. Mas a melhor amostragem fica sendo Verdura, sendo inclusive gravada posteriormente por Caetano Veloso no LP Outras palavras (1981), e que poderia muito bem ter sido escrita por Torquato:

de repente
me lembro do verde
da cor verde
a mais verde que existe
a cor mais alegre
a cor mais triste
o verde que vestes
o verde que vestiste
o dia em que te vi
o dia em que me viste

de repente
vendi meus filhos
a uma família americana
eles têm carro
eles têm grana
eles têm casa
a grama é bacana
só assim eles podem voltar
e pegar um sol em copacabana (CER,p.84)



O ambiente inicial do texto (embasado por paralelismos gramaticais, como: o dia em que te vi/ o dia em que me viste; e eles têm carro/ eles têm grana), a partir de um recorte memorialístico dado meio que por acaso (de repente me lembro do verde), é eminentemente tropicalista, utilizando para isso uma das cores-símbolo do Brasil, em todas as suas nuances e contradições (a cor mais alegre/ a cor mais triste). Desse modo, o poema atinge um tom quase lisérgico, no qual ressaltam ecos do tropicalismo: superbacana, de Caetano Veloso, e ai de ti, copacabana, de Torquato. Ocorre então uma inversão paródica do nacionalismo, principalmente na segunda estrofe, que funciona como uma espécie de crítica política avant la lettre à emigração de brasileiros em busca de melhores condições de vida, numa progressão desenfreada, principalmente para os Estados Unidos, nos anos que se seguiram à primeira publicação do texto em livro (1981).

Poesia e Invenção


Os textos de Leminski, assim como os de Torquato, parecem tocados pela necessidade de invenção, do poema como texto autônomo, nova realidade diante da(s) realidade(s). Invenção, aqui, pode ter o sentido dado por Leyla Perrone-Moisés:

"Invenção" é também a criação de uma coisa nova, mas não de modo divino e absoluto. Inventar é usar o engenho humano, é interferir localizadamente no conjunto dos artefatos de que o homem dispõe para tornar sua vida mais rica e mais interessante. Dentro de um sistema de Verdade, invenção tem algo até de pejorativo. Diz-se de uma mentira: isso é uma invenção. Daí haver algo de provocador no uso da palavra invenção para designar o fazer artístico. O escritor que diz 'eu invento' recusa as verdades absolutas e os valores estáveis, ressalta sua habilidade mais do que sua inspiração. (...) Chamada de invenção, a obra de arte é comparável à pólvora ou ao avião. 22


Portanto, ao aproximar os nomes de Leminski e Torquato do conceito de invenção, procura-se, na verdade, clarificar um procedimento comum aos dois poetas, em oposição à idéia de arte reflexiva. Torquato aproxima, de modo explícito, a linguagem do corpo e o corpo da linguagem, ou seja, o poeta procura dar a ver a correspondência entre ato criador (recitar/escrever) e dado existencial, acarretando, no atrito entre eles, “imprevisíveis significados”, “informação” e “invenção”, como nesse trecho:

Quando eu a recito ou quando eu a escrevo, uma palavra -um mundo poluído- explode comigo e logo os estilhaços desse corpo arrebentado, retalhado em lascas de corte e fogo e morte (como napalm) espalham imprevisíveis significados ao redor de mim: informação. Informação: há palavras que estão nos dicionários e outras que não estão e outras que eu posso inventar, inverter. 23


O que Leminski pretende, por seu turno, é

CONSTRUIR estruturas, processos e recursos, inovadores, frustrativos às expectativas, aberturas, ciente de que mexer profundamente com os homens é mexer com os próprios fundamentos materiais em que se dá a comunicação. Indústria de base: na própria infra-estrutura sígnica. (...) Função fundadora, construtiva, inovadora, heurística, da consciência. (...) Quem não entende o caráter produtor de consciência, nunca compreenderá a arte de vanguarda. (...) O poema de invenção ou experimental não reflete. Ele é um novo objeto do mundo (um Primeiro). É crítica do mundo, pela linguagem, o que só consegue ser sendo também crítica da linguagem, onde se depositam os valores da cultura, os mitos e os ideologemas vigentes. 24


Construir, nesse caso, é inventar, passo a passo, palavra por palavra,com a “perfeição das coisas feitas nas coxas”, um objeto poético que é a um só tempo e metalingüisticamente, crítica do mundo e da linguagem.


Referências Bibliográficas


1 FAVARETTO, 1979. p.97.

2 LEMINSKI, 1994b. p.26.

3 ASCHER, 1995. p.6.

4 FAVARETTO, 1979. p.8,11,18,19 e 20.

5 LEMINSKI, 1986a. p.78.

6 CÉSAR, 1993. p.127.

7 PIGNATARI, 1982.

8 LEMINSKI, 1992. p.175.

9 LEMINSKI, 1994b. p.92.

10 SALOMÃO, 1992. p.6.

11 LEMINSKI, 1992. p.159.

12 BONVICINO, 1992b. p.171.

13 SALOMÃO, 1995. p.13.

14 TORQUATO NETO, 1982. p.137 e 180, respectivamente.

15 MACHADO, 1992. p.6.

16 TORQUATO NETO, 1982. p.61.

17 LEMINSKI, 1992. p.46.

18 WISNICK, J.M, 1992. p.4.

19 LEMINSKI, 1994b. p.28.

20 A partir daqui, as citações dos poemas de Leminski serão identificadas assim: LVEC (La vie en close); DV (Distraídos venceremos) e CR (Caprichos e Relaxos).

21 BONVICINO, 1992d. p.186.

22 PERRONE-MOISÉS, 1990. p.101.

23 TORQUATO NETO, 1982. p.98.

24 LEMINSKI, 1986a. p.67.

*Publicado originalmente em REVISTA DE ESTUDOS DE LITERATURA, Belo Horizonte, MG, vol. 4, p. 135-145, out. 1996.

NAVILOUCA



Os poetas Torquato Neto e Wally Salomão lançaram em 1974 a única edição de Navilouca, revista de poesia que, infelizmente, o grande Torquato não pode ver impressa. Desde 1972, quando ela começou a ganhar forma, já se esperava uma obra que ficou como um marco da produção contracultural da época, uma revista que corria por fora dentro do circuito de poetas-inventores que surgiram entre os anos 60 e 70. A edição conta ainda com a participação luxuosa da tríade concretista, que de algum modo apadrinhou a geração desbundada da poeisa brasileira que corria muito pela canção nos anos de chumbo. Uma revista de arte, arte poética e gráfica. Almanaque dos Aqualoucos, ali Torquato escrevia em letras gigantes: O poeta é a mãe das artes e das manhas em geral. Uma obra-farol, registro de uma época em que a poesia brasileira tomava novo corpo, outros rumos. A edição é raríssima. Mas eterna.