segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

TORQUATO ENTRE NÓS

André Monteiro


A imagem viva de um escritor não vive da posse de seu rosto. Torna-se música: imagem que nos faz dançar. Enunciação vivida como vozes que permanecem gritando entre nós. Não são fantasmas de uma imaginação saudosa (clichê romântico de uma infância perdida ou de uma morte anunciada em compaixão prévia). São brinquedos cheios de eletricidade zombando de nosso tempo previsto, nossa cronologia de figurinhas emboloradas, idolatradas no álbum de retratos familiares da história literária. Um fragmento de nota pessoal (a suposta intimidade) saltando para fora do poder de sua moldura. Será isso o invisível da imagem? Torquato Neto por Torquato Neto: você olha nos meus olhos e não vê nada: pois é assim mesmo que eu quero ser olhado. É assim mesmo que eu quero que você não entenda... (1)

Quem é esse você enunciado no texto? Seguindo a trilha verossímil (o eixo sintagmático lógico-discursivo) do desfecho, seria Ana Duarte, a então mulher de Torquato: ...e eu me viro ao teu lado, te acordo, te amo, ana (2). Seguindo uma outra trilha, a de um ato de leitura idealizado e não menos verossímil, o você poderia vir a ser uma integridade nossa. Mas você, nesse caso, já não possui, entre nós, lugar seguro. Sua verossimilhança (os olhos nos olhos) é fugidia, não se pode alcançá-la com um mero mergulho narcisista. Não se trata de desafeto: nosso rosto se descontinua diante de uma enunciação desviante, tal como na proposição de Godard ao se recusar, em 1995, a comemorar o automatismo cronológico dos cem anos de cinema: O espelho deveria refletir a imagem antes de reenviá-la (3). Um desencontro reflexivo diante do espelho "eu" nos multiplica (trata-se de um movimento) e nos convida a criar vidas entre vidas.

Mas não nos enganemos. Certamente existe em nós a tentação da transparência biográfica. Automatismo de nossa civilização. Queremos contar tudo: um rosto outro agarrado em um rosto mesmo. Um rosto sempre nosso a nos esperar lá trás. Um rosto de propriedade privada: efeito e causa. Não será toda verossimilhança uma poderosa moldura? A imagem de um escritor, quando nos interroga, produz buracos e nós imediatamente passamos a preenchê-los com estratégias confortáveis de uma boa novela, passível de uma comunhão didática e varrida de estranhezas. Em nosso tempo, como nos ensina Jim Morison na série de The Lords, deu-se uma metamorfose: do corpo, enlouquecido pela dança, passamos à masturbação do voyeur cujo emblema é o espelho e cuja prece é a janela. Eis a nossa impotência: Não atravessas nunca o espelho/nem mergulhas pela janela(4) . A impotência é a força dominante de nossas instituições sociais/individuais. Ela constitui, nos dizeres de Deleuze/Parnet, nossos afetos tristes: ...Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesses em nos comunicar afetos tristes. Afetos tristes são todos aqueles que diminuem nossa potência de agir...(5)

Propomos aqui um prazer: o de encontrar as vozes de Torquato Neto em sua potência e na alegria (composição de ações) de seus cantos entre nós. Mas é possível o prazer de atravessarmos um corpo - e não querermos prendê-lo - sem ao mesmo tempo cuidarmos de nossas dores? Nietzsche já nos ensinou que a dor pergunta sempre pela causa enquanto o prazer tende a ficar consigo mesmo e não olhar para trás (6). Se a nossa vontade aqui é a de seguir em frente (dar vida à vida) - ação de saltarmos para além das garras do espelho re-acionário -, essa vontade também já aprendeu com Nietzsche que, por vezes, é necessário recuar para se dar um grande salto (7).

Recuo histórico (leia-se verossimilhança) para tomar impulso:

Ao ingressarmos no mestrado em Literatura Brasileira da PUC-Rio, em 1997, trazíamos em nosso corpo o peso de uma paixão antiga e enorme pelo rosto de Torquato Neto. O livro Os últimos dias de paupéria era nossa bíblia sagrada, a representação mais radical de um espelho contra-cultural. Olhávamos para Torquato de um modo fixo e obsessivo: paradoxalmente, nós o queríamos em um centro puro que, inversamente, poderia configurar um ideal de margem: o poeta desafinado da Geléia Geral brasileira, o anjo torto suicida do tropicalismo. Líamos Torquato pelo seu suposto fim e não pelos seus meios possíveis. Não procurávamos, evidentemente, um autógrafo, mas uma autópsia.

O anjo torto era nossa loucura chorosa e impotente. Diante das espinhas e dos espinhos de uma profunda sensação de desajuste escolar, familiar e institucional, esse Anjo se tornava nosso herói: aquele que teve a coragem de voar para onde nossa recusa supostamente ainda não podia pagar pra ver: o abandono da própria vida. Uma identidade contempladora com seu adeus, vou pra não voltar justificava o nosso ressentimento social diante dos fantasmas tidos como os inimigos opressores: os cultos infernais da maioria. Para nós, Torquato não era outra coisa senão, como declarou certa vez Décio Pignatari, o representante de ... de tudo aquilo que, de uma forma ou de outra, era marginal a partir dos anos 60.(8)

Durante o período em que elaboramos nossa dissertação de mestrado, defendida no início de 1999, congelávamos mais uma vez a imagem de Torquato Neto. Mas dessa vez, éramos movidos por uma força oposta: um desejo de realizar uma espécie de revisão autocrítica de nossa paixão adolescente pela mitologia marginal.

Analisamos a trajetória estético-existencial de Torquato em busca de uma reflexão capaz de compreender de que modo tal trajetória foi legitimada e se legitimou enquanto um mito de marginalidade. A marginalidade era agora encarada como uma política e não como uma crença. Desse modo, o suicídio precoce de Torquato - precedido por sua suposta e bem contada biografia, marcada pela loucura e pelo desvio estético-existencial - passou a ser encarado como o motor de sua visibilidade, de sua canonização em determinada tradição. Sua autofagia, que em uma visão estática e absoluta do mito de marginalidade seria exclusivamente o seu silêncio de morte (seu dar as costas ao sol, como escreveu Augusto de Campos), tornou-se, ao mesmo tempo, sua fala de integração à própria vida ordinária do sistema de compra e venda da cultura dominante.

Realizamos um exercício reflexivo necessário, mas niilista, em torno de uma mera constatação relativista. A margem já não podia ocupar um centro mágico, mas uma legitimidade política, uma negociação. Se em nossa paixão adolescente pelo mito do marginal assassinávamos Torquato para morrer com ele de paixão, agora o que fazíamos era um assassinato frio de nossa paixão assassina. Sufocávamos o prazer mítico de ler Torquato em nome de um trabalho adulto com a cultura e com a literatura. A obsessão pela virtude acadêmica era então o nosso medo viciado e, também, nosso vício respeitado.

Hoje, percebemos que Torquato ainda nos toca o corpo. Um outro Torquato. Um outro que sempre esteve vivo entre nós, apesar de nossas encenações de assassinato. Assumimos uma dívida com a nossa vida e nos indagamos: como será possível, agora, manifestar um afeto com Torquato para além de uma dicotomia entre a paixão mítico-idólatra do adolescente e a frieza adulta meramente relativizadora e desconstrutora dessa paixão? Como trazer, com a linguagem que aqui se produz, um escritor de volta a uma vida? Com uma expressão clássica de Nietzsche, podemos nos indagar: de que modo podemos encarar uma escritura com vontade de potência? Bem entendido, vontade de potência não é vontade de poder nem é vontade de dominar. Potência não é cobiça, mas criação e doação (9)- diz Deleuze. A criação é um gesto de violência: traço rasgando uma página em branco. A doação é aquilo que nos libera de nossos vícios, aquilo que se cria quando nos perdemos deles. Os vícios deixam de ser o que são justamente quando a suposta pureza das virtudes (a tristeza de nosso porto seguro, como na letra da canção tropicalista Geléia Geral) já não dá conta de abraçar a si mesma. A cria da mãe virtude (o vício) não é capaz de suportar uma pretensão genética totalitária:
Torquato escreve:

a) A virtude é o próprio vício
conforme se sabe;
acabe logo comigo
ou se acabe.
b) A virtude é o próprio vício
- conforme se sabe -
estão no fim, no início/da escada. Chave.
(...)
e) A virtude, a mãe do vício
como eu tenho vinte dedos,
ainda,
e ainda é cedo:
você olha nos meus olhos
mas não vê nada, se lembra?
f) A virtude
mais o vício: início da
MINHA
transa. Início fácil, termino:
Deus é precipício,
durma,
e nem com Deus no hospício
(durma), o hospício é refúgio.
Fuja.(10)

Inaugura-se um movimento (uma criação) em que uma força inominável de vida vence o limite máximo (a onisciência) da abstração: deus como precipício. Mas não se trata de uma simples inversão dos dois lados da escada moral: o vício no lugar da virtude e vice-versa. Tampouco se quer o louco no lugar do louco, o refúgio. Trata-se de um modo de fuga através do qual as possibilidades se somam e se traçam e se sujam e se transam e, em fim, que é também em início, a criatura e a criação se namoram e se fundem (a virtude é o próprio vício), mas elas ainda se distinguem (a virtude mais o vício). E se tudo é tão claro como a soma dos vinte dedos passamos a ler então o que não está escrito, a imagem que dança: você olha nos meus olhos/mas não vê nada, se lembra? Para onde nos leva o afeto dessa pergunta? Para recordar o futuro, como quer Daniel Lins lendo o projeto do bom esquecimento de Nietzsche?: O esquecimento é uma rebelião, uma desorganização, uma dissidência ancorada na meditação ativa, na comtemplação que é o oposto do mutismo ou do quietismo dos homens triturados pelas máquinas da memória .(11)

Há algo n'Os últimos dias de paupéria que - agora sabemos explicitar - já vinha marcando nosso corpo desde nossas primeiras leituras. Estava lá e vive aqui, na periferia do corpo estilhaçado, dando pulso à nossa embriaguez para além da natureza do mito e do contra-mito já aqui cronologizados. Em diálogo com Suely Rolnik poderíamos pensar que esse algo talvez já não constitua uma imagem, mas uma marca invisível, humana e desumana, que não cessa de encontrar, em nós, ambientes de ressonância. São como composições que atualizam uma nova diferença, um desassossego desestabilizador. Não somos nós quem conduzimos essas marcas. Ao contrário: O que o sujeito pode, é deixar-se estranhar pelas marcas que se fazem em seu corpo, é tentar criar sentido que permita sua existencialização - e quanto mais consegue fazê-lo, provavelmente maior é o grau de potência com que a vida se afirma em sua existência. (12)

Torquato sempre será bem vindo - será potente - enquanto com ele pudermos nos estranhar. Enquanto com ele não pudermos ter a certeza do caminho. Perdição, força, encontro. Só assim é possível uma experiência. Experimentar é uma palavra perigosa. Vista na estreiteza de seu estereótipo, tem um cheiro estrito de cronologia crônica, mofo dos anos 70. Paralisia. Há muitos conhecidos nossos que em nome de uma imagem experimental conservam verdadeiros suicídios culturais. Experimentar, aqui, não significa propriamente sair do limite, mas sair com o limite, criar e ampliar com ele possibilidades de alterações: ações outras entre nós outros. O que não se altera não pode viver, afirma o filósofo espanhol Ortega y Gasset gritando para nosotros: salgamos fuera! Para Ortega, a vida está sempre fora do Eu. E sendo mais ampla do que o Eu, ela conta, sempre, com o que ele não é, suas circunstâncias. Quando o Eu fecha os olhos e procura por si mesmo, supostamente dentro de um puro si mesmo, ele não se encontra como coisa, mas como um programa, pois sua própria paisagem psíquica será sempre um dentro que se faz um fora. É em conflito com o lá fora que se pode perceber a diferença, a distinção de um EU que se move e se altera no mundo: fuera es el mundo (13).

Como se daria esse fora - que é vida - no processo do escrever? O descontrole de um estalo marcando um estilo programado nos libera de nossas egocêntricas e neuróticas boas ou más intenções todo-poderosas. É esse descontrole que pode nos afastar dos domínios estritos da literatura e nos aproximar de um saudável delírio. Delirar é trair as potências fixas que querem nos reter (14). Assumir o escrever como um processo de devir, propor um escritor que não deseje mais ser conhecido ou reconhecido, tal como na frase de Deleuze: escrever é tornar-se outra coisa que não escritor (15). Ler também não seria tornar-se outra coisa que não leitor?

O que nos interessa não é mais Torquato representando Torquato. Mas encontrar o lugar onde Torquato com Torquato se torna imperceptível (16): percepção inenarrável que não podemos afirmar através de um tratado lógico. O que se quer é um deslizar por entre uma escritura alegre. Aquela que firma conosco sua perdição, não sendo digna de ser explicada, mas convivida, em um Cogito sempre outro:


COGITO

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
da pessoa que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim. (17)

Aceita-se o mundo como um devir e o fim é vivido sob o signo do imediato: a linguagem não representa algo, mas apresenta o intransferível. Intransferível não é a pessoa do homem, iniciada na medida do impossível, mas o seu lugar de encontro com a linguagem (pronome) que não cessa de se derivar: encontro singular que se estilhaça feito um pedaço desse mim. Um humanismo em crise que vive tranqüilamente todas as horas do seu fim. Um fim que não cessa porque é presente, é passagem. Uma vidência do presente sem segredos dantes, nem secretos dentes. Vidência distinta do estereótipo de grandiloqüência humanista do bardo romântico: legislador do futuro.

O homem inscrito nos textos de Torquato não se faz por sua suposta essência, mas por seu lugar de perigo. O homem é um estado inacabado. É no seu limite, no seu risco de humana desumanização, que o homem berra o homem que ele pode vir a ser, nem que seja um boi:

Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela...
E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão. (18)

O matadouro trágico não é um lugar de tristeza, mas um modo de arrancar alegria (ação) lá da ponta do abismo da vida. Se é verdade, como já afirmou Waly Salomão, que ...é impossível ler uma linha de Torquato sem pensar que ele se matou... (19), esse suicídio pode não ser a memória de um ponto final pronto para nossa identificação fatal, mas uma linha de fuga (uma melodia a mais) conectada no amplo espaço do ambiente Torquato.

Falar de Torquato agora é como ouvir música. Mas não a música da Música: o protocolo especializado das classificações. Trata-se de um tirar leite de pedra. Ler com as pés, podemos afirmar parafraseando Nietzsche em seu júbilo de escrita dançante-musical. Escrever Torquato agora é então escrever com as marcas que escrevem: ...escrever é fazer letra para a música do tempo; e é esta música sempre singular (20).

A música em Torquato não nos parece ter propriamente a ver com o sentido estrito da verbivocovisualidade do formalismo concretista, ou da estrita melopéia de Ezra Pound que era capaz de perceber o canto dos pássaros nas palavras de Arnaut Daniel. Se Torquato se afetou por uma educação concretista dos sentidos, tal afeto se conectou, de modo simultâneo, a audições e visões de uma desarticulação relacional da palavra que não estão fora da linguagem, elas são o seu fora (21). Ciladas guardadas nas palavras, poluição de imprevisíveis significados:

Quando eu a recito ou quando eu a escrevo, uma palavra - um mundo poluído - explode comigo e logo os estilhaços desse corpo arrebentado, retalhado em lascas de corte (como napalm) espalham imprevisíveis significados ao redor de mim: informação. Informação: há palavras que estão nos dicionários e outras que não estão e outras que eu posso inventar, inverter. Todas juntas e à minha disposição, aparentemente limpas, estão imundas e transformaram-se, tanto tempo, num amontoado de ciladas.

Uma palavra é mais do que uma palavra, além de uma cilada. Elas estão no mundo e explodem, bombardeadas. Agora não se fala nada e tudo é transparente em cada forma: qualquer palavra é um gesto e em sua orla os pássaros sempre cantam nos hospícios. No princípio era o Verbo e o apocalipse, aqui, será apenas uma espécie de caos no interior tenebroso da semântica. Salve-se quem puder.(22)

Entre nós, a grande arte de Torquato consiste na sua desterritorialização: a vida em movimento. Uma espécie de não-obra que pode ser sentida de forma incisiva justamente no livro que ficou conhecido como sua obra póstuma: Os últimos dias de paupéria, lançado inicialmente em 1973 pela editora Eldorado Tijuca e, posteriormente, relançado e ampliado pela Max Limonad em 1982. Waly Salomão, organizador do livro afirmou certa vez:

Foi um trabalho de resgate que recusava a linearidade, pois se desdobrava em ziguezagues. Os critérios de seleção tinham que respeitar as variantes de um mesmo poema, por exemplo. Não tinha cabimento um corte severo de eleição da "melhor" variante. Somente o autor (...) poderia ter escolhido tal vertente ou tal outra. Daí optei por uma amostragem perspectiva, ou seja, a revelação dos diferentes vértices encontrados. Há quem não suporte o rugir das crateras, dos abismos, dos buracos da liberdade, ou seja, encontrar-se em alto mar quando supunha-se atracado em porto seguro... (23)

Através então de uma leitura em ziguezagues, capaz de surpreender a expectativa de uma recepção ancorada em uma lógica linear e à espera de um produto estético bem acabado e coerente, viajamos por traços e contrastes de um poeta inacabado cuja multiplicidade vai do empolgado tropicalista, autor de manifestos e engajado em um projeto coletivo de intervenção neo-antropofágica na cultura brasileira, ao pós-tropicalista gauche, do jornalista de amenidades ao cronista da guerrilha cultural, apologista do cinema marginal e da cultura subterrânea (24); da visibilidade, conquistada principalmente através das letras de música (parcerias com Edu Lobo, Gil, Caetano, Macalé e outros), aos diários de hospício; da oswaldiana alegria como a prova dos nove à tristeza como porto seguro.

Mas não é apenas pela multiplicidade que essas máscaras nos des-territorializam. É muito mais do que isso. É que Torquato é mesmo um pensador des-territorializante. Uma música que não cessa de nos surpreender. Em uma crônica de amenidades, pelos cantos do jornalista (jornalista?), não raro ouvimos uma voz que nos atualiza: notas de perplexidade (dissonâncias) atuais (em ato) para os dias de sempre: vida para os amortecedores de notícias:

Hoje tem espetáculo

Vá ao cinema, presta?
Vá ao teatro, presta?
Esses filmes servem a quem?
Essas peças: servem? Para que? (25)

Torquato não pára de nos sugerir uma ocupação de espaço. Manter a vida acesa pelos lugares por onde andamos. Uma política de luta para tomar o lugar. Ouçamos: ocupar espaço, num limite de tradução, quer dizer tomar o lugar. (...) Com sol e com chuva. Dentro de casa,na rua. (...) espantar a caretice: tomar o lugar: manter o arco: os pés no chão: um dia depois do outro. (26)

Agora - aqui dentro, lá fora - e a partir dessa sugestão de ocupação - podemos nos indagar: que tipo de espaço estamos ocupando agora? Estamos ocupando algum espaço?
Sabemos: Os livros só valem à pena quando nos mexem com a vida, quando com eles a alma da vida não é pequena. O resto é burocracia acadêmica, troca simbólica de moedas assassinas, prontas a nos sugar a vida e nos tornar preparados para o comércio da morte. E não basta Ler Torquato, Deleuze ou Nietzsche ou etc. para que nos salvemos. Os livros não podem nos salvar sozinhos. É necessário que nós o necessitemos com a vida e em vivo.

Muitos intelectuais e professores defendem a leitura como salvação da cultura. Mas não é difícil encontrarmos mais idiotas no mundo das letras do que fora dele. Idiota, em seu sentido etmológico, e também em seu sentido vital, ensina-nos Donaldo Schüler lendo Heráclito, é aquele que não sai de si, é aquele que não se des-territorializa. Para que ler um livro? Para não sair do livro? Para nos tornarmos escravos do livro? De que modo temos lido nossos livros? Como livros nossos? Ou como o livro do professor? (um professor que não está em nós).

Do lado de dentro, do lado de fora, a pergunta, aqui, ainda deve ser: O que estamos dizendo aqui encontra ressonância aí? Ou estamos sendo idiotas? O que vocês acham?

*

Notas:

(1) NETO, Torquato. Os últimos dias de paupéria. São Paulo: Max Limonad, 1982, p.325.
(2) Idem, p.325.
(3) Apud SALOMÃO, Waly. Hélio Oiticica: Qual é o parangolé? Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.
(4) MORISON, James Douglas. Os Mestres e as Criaturas Novas. Lisboa: Assírio & Alvim, 1994, p.36.
(5) DELEUZE, Gilles, PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuto, 1998, p.75.
(6) NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 64.
(7) NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 189.
(8) Declaração extraída de uma entrevista videografada concedida a Ivan Cardoso sobre Torquato Neto. A entrevista foi exibida pela Rede Manchete no programa Documento Especial em janeiro de 1992.
(9) Cf DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Lisboa: Edições 70, 1994, p. 24.
(10) NETO, Torquato. Os últimos dias de paupéria. São Paulo: Max Limonad, 1982, p.86.
(11) LINS, Daniel. "Esquecer não é crime". In : Nietzsche e Deleuze: Intensidade e Paixão. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria de Cultura e Desporto do Estado, 2000, p. 49.
(12) ROLNIK, Suely. "Pensamento, corpo e devir - uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico". In : Cadernos de Subjetividade. São Paulo: PUC, 1993, no 2, p. 242.
(13) Ver ORTEGA Y GASSET, José. Unas Lecciones de Metafísica. Madrid: Alianza Editorial, 1999, p. 159-170.
(14) DELEUZE, Gilles, PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuto, 1998, p.53.
(15) DELEUZE, Gilles. "Literatura e vida". In : Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, p, 1997, p.11.
(16) Cf: DELEUZE, Gilles, PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuto, 1998, p.58.
(17) NETO, Torquato. Os últimos dias de paupéria. São Paulo: Max Limonad, 1982, p. 98.
(18) Idem, p. 63.
(19) "Cave, canem, cuidado com o cão". In : Folha de São Paulo. São Paulo, 5 de novembro de 1995, p.5.
(20) ROLNIK, Suely. "Pensamento, corpo e devir - uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico". In : Cadernos de Subjetividade. São Paulo: PUC, 1993, no 2, p. 242.
(21) Cf: DELEUZE, Gilles. "Literatura e vida". In : Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, p, 1997, p.16.
(22) NETO, Torquato. Os últimos dias de paupéria. São Paulo: Max Limonad, 1982, p. 98.
(23) "Cave, canem, cuidado com o cão". In : Folha de São Paulo. São Paulo, 05/09/1995.
(24) Palavra cunhada por Hélio Oiticica pra designar o que seria o underground brasileiro, ou, como afirmou o próprio Torquato, "...subterrânea deve significar underground, só que traduzido para o brasileiro curtido de nossos dias..." (NETO: 1982, p.70).
(25)NETO, Torquato. Os últimos dias de paupéria. São Paulo: Max Limonad, 1982, p. 110.
(26)Idem, 180.

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André Monteiro nasceu em São João del-Rei, MG, em 1973. Licenciou-se em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora. É mestre e doutor em Literatura Brasileira pela PUC-RIO. Publicou, entre outros, o ensaio A ruptura do escorpião: ensaio sobre Torquato neto e o mito de marginalidade (2000) e Ossos do Ócio (poesias reunidas, 2001), ambos pela Cone Sul (SP).


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 Artigo disponivel na ZUNÁI - Revista de Poesia & Debates

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