domingo, 26 de dezembro de 2010

Jornal "Opinião" - pagina "Comunicação - entrevista Torquato Neto

Entrevista publicada na página Comunicação, do jornal Opinião, de Teresina, no dia 31 de janeiro de 1971, página 3.

“O POETA DO TROPICALISMO” AFIRMA: JUCA CHAVES É BÔBO DA CORTE

A patota da Comunicação, estando sempre ao par e ao ímpar dos fatos que nos cercam, se reuniu na casa do Torquato Neto para mais uma das tradicionais entrevistas nossas (aliás, depois que nós começamos a fazer este tipo de jornalismo em Teresina, o resto do pessoal aí também entrou no ritmo que nós já estávamos. Não é nada não, mas por que vocês não têm imaginação?) O resultado desse bate-papo agradável que nós curtimos está aí. Queremos ressaltar que o Torquato é um sujeito genial, muito bacana, mesmo. Estejam na nossa.

Comunicação / Torquato, como foi que você entrou nessa de Tropicalismo?

Torquato / Do mesmo jeito que entrei em negócio de música, gente. Por causa de Caetano e Gil (de quem eu já era amigo desde 1960, na Bahia), numa época em que nenhum de nós fazia música. Em 1962 fui para o Rio, fiquei sempre em contato com eles, mas eu não pensava em fazer música. Meu interesse sempre foi negócio de cinema, sabe? Eu tava jogado nessa de cinema, mas quando a turma chegou, por volta de 1964, nós nos entrosamos e começamos a fazer música. Daí pra frente nunca mais nos separamos.

Comunicação / Nas músicas da Tropicália, você sempre só fez as letras?

Torquato / Olha, nós não tínhamos um esquema rígido de trabalho. Eu sempre faço uma letra que nós chamamos de “monstro”, e depois a gente discute essa letra e trabalha junto sobre ela. A música, entretanto, sempre é do Gil ou do Caetano. Mas a gente discutia sempre como é que ia ser. Houve um tempo em que eu trabalhei com o Edu Lobo, mas eu acho que o mais importante sempre foi o que eu fiz com Caetano e Gil.

Comunicação / Qual a melhor época da tropicália?

Torquato / 1966 foi um ano de perplexidade, quando nós não fizemos nada. Então, nós lançamos em 66 coisas feitas em 65 (que foi aquela época de Louvação, Roda etc). Passamos um ano inteiro na maior perplexidade, porque estávamos sentindo que aquela jogada de esquerda festiva musical em que estávamos envolvidos não era mais o quente. O trabalho de Roberto Carlos (fazendo aquela música incrível, maravilhosa, mandando todo mundo pro inferno) e a presença dos Beatles no mundo inteiro foi que deram a dica para nós. Caetano saiu com Alegria, Alegria, Gil com Domingo no Parque. E dai pra frente foi a guerra.

Comunicação / O tropicalismo tinha base em idéias ou era uma coisa inteiramente improvisada

Torquato / Não foi inteiramente improvisado. Também nós não tratamos de codificar alguma coisa, isso não interessava. O que se chamou de Tropicalismo (esse nome nunca foi dado por nós, foi pela imprensa) foi uma tentativa de propor uma certa liberdade de criação dentro da MPB, de acabar com aquela imbecilidade daquela “guerra santa” idiota entre MPB “pura” versus iê-iê-iê, essa coisa meio histérica e absolutamente reacionária e alienada de nossa época. Isso tinha de ser liquidado, e foi. Queríamos também reavivar a coisa. Porque, naquela época, se a gente pretendia incorporar toda informação que recebíamos da música internacional, tinha de ser (como sempre foi) a partir de uma base inevitavelmente nacional. Por isso a gente fez o que fez. Fizemos aquele disco manifesto Tropicália, onde tem o bolero, onde tem Coração Materno, onde a gente desenterrou todos os fantasmas da música autêntica brasileira. Tudo isso para propor um trabalho sobre essas coisas, um trabalho que já teria sobre si uma carga de informações que estávamos recebendo. Quer dizer: só quem era inteiramente cego, surdo e mudo não notou. Foi uma época danada de guerras, em 68, um ano incrível! A Tropicália não foi improvisada. Nós queríamos era bagunçar o coreto da música popular brasileira.

Comunicação / O Tropicalismo foi só na música, ou teve outro ramo?

Torquato / Eu prefiro chamar Tropicália. “Ismo” enquadra o negócio demais, nem corresponde mesmo ao que a gente estava querendo. Nós começamos o movimento na música, que refletiu em todas as manifestações de cultura brasileira. No cinema, o próprio Glauber definiu a tendência do Cinema Novo como Tropicalista, citando inclusive a fonte da revolução de receber a informação nova sem preconceito, e utilizá-la dentro de uma linguagem ao mesmo tempo nacional e universal (o radinho de pilha acabou com o folclore há muito tempo). No teatro, o movimento coincidiu com o trabalho de José Celso e do Grupo Oficina, principalmente quando lançamos o nosso trabalho, no fim de 67. Na literatura, tivemos aproximação com o pessoal do Movimento Concretista de São Paulo, aqueles poetas que desde 56 vinham tentando renovar a linguagem da poesia. São caras que, aqui no Brasil, ninguém sabe o que têm feito, mas são de renome internacional. Nossa aproximação com eles foi fundamental e ajudou no duro no trabalho que estávamos tentando fazer.

Comunicação / O Rogério Duprat disse que não existe mais a Tropicália.

Torquato / Não, não existe. De maneira nenhum. Ela se autoliquidou, como movimento. Mas a verdadeira tropicália, o Brasil, continua em processo. Nosso trabalho tinha de ser aquele mesmo, tinha que abrir as portas para que o resto do pessoal sentisse que ainda havia liberdade de criação. Caetano e Gil sofreram bastante e tiveram que sair do Brasil por um tempo. Agora Caetano voltou, eu estive por aí afora, cada um seguiu seu rumo e, hoje em dia, é só música que existe. O grupo acabou.

Comunicação / Então, foi uma libertação?

Torquato / O Gil definiu isso naquela época como um “exercício de liberdade”. Era isso que a gente queria fazer, e eu acho que conseguimos porque, de lá pra cá, a MPB é outra.

Comunicação / Aquele disco que foi um manifesto da Tropicália procurou satirizar alguma coisa? No elepê do Gil e no do Caetano, lançados anteriormente, já tinham outras propostas. Faixas que nada tinham em comum entre si. Por isso, como falei antes, é que a gente se recusava a ser “ismo”. Tropicália foi uma liberdade.

Comunicação / Atualmente você está tendo algum contato com Gil e Caetano?

Torquato / Eu soube da chegada de Caetano na Bahia, vendo Tevê aqui em casa. Estava sem saber direito. Há dois meses atrás, eles haviam escrito dizendo que vinham passar o carnaval. Com o Caetano, nem tanto, mas com o Gil eu tenho mais contato. Ele lançou há duas semanas um elepê novo no Festival de MIDEM, em Canes, e escreveu dizendo que o disco não saiu como ele queria. Mesmo porque ele teve muito mais dificuldade pra gravar. Tanta dificuldade, que teve de tocar bateria porque não encontrou um baterista que fizesse o balanço que ele queria, o mesmo caso com baixo, violão e guitarra, além de cantar. Fez esforço terrível porque precisava realmente lançar esse disco agora (assinou contrato com a Paramount Records desde que se apresentou no Festival de Wight).

Comunicação / Vocês vão partir pra outra?

Torquato / Rapaz, a Tropicália acabou. Acabou mesmo. A Tropicália é o Brasil, é essa salada mista de tudo, de miséria, de tecnologia, de tudo isso…

Comunicação / Depois que o Caetano e Gil foram embora, você tem novos companheiros?

Torquato / Eu fui pra Europa antes deles, em 68, passei o ano de 69 todo lá. Encontrei-me com Caetano em Paris, quando eles saíram do Brasil. Voltei no fim de 69 meio sem graça e querendo recomeçar aquela minha jogada de cinema, já que não tinha interesse pra mim continuar fazendo música, porque a minha condição de trabalho foi sempre com relações de amizade. Só sei trabalhar com pessoas de quem eu gosto muito e de quem não discordo em nada. Isso é meio difícil da gente encontrar. Depois que cheguei, andei fazendo umas músicas com Nonato Buzar, pra ganhar dinheiro. E por último, perto de vir pra cá, eu comecei um trabalho com o Macalé, que está me interessando muito. Nada disso foi divulgado e eu nem sei como está. Fizemos seis músicas e a censura cortou quatro. Duas ainda não sei se vai dar pé de gravar. Só vou voltar no fim de março e não sei… A gente tem que enfrentar isso tudo pra trabalhar hoje em dia. E pra fazer só aquela coisinha bendita, abençoada, é meio chato e eu não agüento.


Comunicação / Quantas músicas em que você trabalhou nelas estão gravadas hoje?

Torquato / Quase trinta músicas.

Comunicação / Os rumos da MPB agora estão certos?

Torquato / Estão abertos.

Comunicação / Qual a sua opinião sobre o FIC?

Torquato / FIC… fique pronto. É um Festival montado sobre o de San Remo, que é uma coisa acadêmica, já era. Quando Macalé deu aquele escândalo, que foi Gotham City, quem ganhou foi uma tal de Luciana. Música que não tem nada de novo ganha sempre o FIC.

Comunicação / No Brasil, quem você acha o melhor intérprete?

Torquato / Mulher, Gal. Homem, Gil.

Comunicação / E compositor?

Torquato / Gil.

Comunicação / Como você situa Roberto Carlos dentro da MPB?

Torquato / Naquela época, em que a gente queria fazer música de protesto, na época em que a gente estava acabando de deteriorar a bossa nova, Roberto Carlos fez a maior música de protesto, Que Tudo Mais Vá Pro Inferno, e a gente feito otário, a fazer isto e aquilo. Até que um dia a gente se mancou: ora, nós estávamos brigando com os caras que estavam aí e esquecendo que há juventude. Quando Roberto Carlos começou com O Calhambeque, quem foi com ele foi a juventude. Aquela mesma juventude que quando eu era garoto, ouvia a Celly Campelo sem o menor preconceito. Só depois, com a cultura universitária, é que a gente vai criando aquela ferrugem preconceituosa e quer ficar purificado através do folclore e de uma brasilidade histérica. Roberto nos ensinou muito. Ele foi muito importante. Quando nós percebemos a burrice de lutar contra a gente mesmo, que era juventude, nós aproveitamos Roberto para uma nova jogada, que começou com Alegria, Alegria. Ele foi muito importante pra toda a cultura brasileira.

Comunicação/ O que houve entre você e Vandré?

Torquato / O Vandré, na época da esquerda musical, disse que eu era o inocente útil do Piauí nas mãos dos baianos. Foi gozado, e, numa entrevista, eu disse que ele era o Carlos Galhardo da esquerda festiva. Vandré queria fazer um tipo de música revolucionária dentro de uma forma reacionária. Eu sou contra o Vandré porque ele parece ser um político do PTB. Pra mim, ele nunca passou de um demagogo de esquerda. A música de Vandré Caminhando, dentro da estrutura acadêmica do FIC, fez a platéia delirar, no mesmo festivalem que Caetano foi vaiado, com a música É Proibido Proibir, e Gil eliminado com Questão de Ordem.

Comunicação / Você acha que Chico também é acadêmico?

Torquato / Na época da Tropicália, o Chico Buarque estava fazendo um trabalho nocivo. Não que o trabalho dele fosse ruim, ele é um ótimo compositor, mas utilizado pela turma mais reacionária como um escudo: a pureza da MPB contra a sujeira da Tropicália.

Comunicação / Quando você voltar para o Rio, vai voltar a compor?

Torquato / Tenho muito pouco a ver com música. Quase nada mesmo. Meu negócio agora é outro. Estou mais ligado agora a cinema.


Entrevista retirada so site Albert Piauí

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Rogério Duarte entrevista Torquato Neto

Essa entrevista está no volume especial da Coleção Encontros sobre a Tropicália, que acaba de ser lançado, e que reunirá entrevistas e documentos entre 1966 e 1969 dos principais expoentes do movimento, como Gil, Caetano, Hélio Oitica, Glauber Rocha, Zé Celso, Rogério Sganzerla, Torquato, Capinam, Tom Zé, Mutantes, Rogério Duprat e Rogério Duarte. Como um aperitivo, segue o diálogo na íntegra:

*****


[Rogério] Torquato, você acha que está cumprindo seu dever de brasileiro?

[Torquato] Yes.

[Rogério] Porque você respondeu em inglês?

[Torquato] Devido a minha formação (Joaquim Nabuco) de comunista.

[Rogério] Presentemente está atuando em alguma emissora?

[Torquato] Não.

[Rogério] Em inglês ou português?

[Torquato] Em português. Nós temos Bananas. Fale.

[Rogério] Assim não, isso é plágio de João de Barro e Alberto Ribeiro. Que tem a declarar?

[Torquato] Vinícius jamais escreveria isso. Vinícius é a minha miss Banana Real. Geraldo Vandré é um gênio.

[Rogério] Você diz um gênio sexual ou matemático?

[Torquato] Nunca dormi com ele.

[Rogério] Por que, você sofre de insônia?

[Torquato] Eu era viciado em psicotrópicos. Hoje em dia eu dou mais valor ao salcalóides…

[Rogério] Eu por minha parte dou mais valor aos aqualoucos.

[Torquato] O Golias é ótimo.

[Rogério] Ele já foi aqualouco?

[Torquato] Yes.

[Rogério] Você não acha que nós devemos tratar melhor os negros?

[Torquato] Yes.

[Rogério] Por exemplo, lá em casa estamos há 2 meses sem empregada. Nesse sentido Malcolm X ou Bertrand Russel foram muito compreensivos. Veja o caso de Sérgio Pôrto com aquela estória do crioulo doido, puro racismo, e racismo paulista, o que é mais grave sendo ele cocarioca, isto é, carioca, não acha nego?

[Torquato] Yes. Acho sim. Agora: o Bertrand Russel é mais branco do que Malcolm X. O que estarei querendo dizer com isso?

[Rogério] Talvez que a noite deste século seja escura e de uma escuridão tão impotente que mesmo no seu âmago mais profundo não são pardos todos os gatos.

[Torquato] Non sense. Auriverde pendão das minhas pernas que a brisa do funil beija e balança. Onde está funil leia-se mesmo Brasil. Nelson Rodrigues inventou a subliteratura e eu endosso..

[Rogério] Mas você não acha que depois de C. Veloso já devemos começar a cuidar mais seriamente da superliteratura?

[Torquato] Yes. Freud explica, não é mesmo?

[Rogério] Seria se fosse. Mas tanto Freud como Sartre como Lévi-Strauss não passam de romancistas da Burguesia. E Lukács?

[Torquato] Foi o caso mais grave de Geraldo Vandré que já conheci. E com a desvantagem de ser tão polido como Leandro Konder. Só que de Romance ele não manjava bulufas. Mas, não exageremos porque Lukacs é um moço de muito futuro.

[Rogério] Além do mais Torquato todas as nossas tragédias ou melodramas individuais fazem parte de um projeto coletivo nosso. Nós fumamos maconha para ter um sucedâneo da fome dos operários e damos a bunda porque não entendemos bem a razão pela qual temos tantas bananas e os camponeses continuam tão desenxavidos.


Texto retirado do blog Impostor

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Os Últimos dias de um romântico

PAULO LEMINSKI *


Tímido Nosferatu na calçada de Copacabana, Torquato Neto perfez o fadário de todo vampiro que se preza, percorrendo a sina dos “não mortos”.

Torquato Neto é, talvez, o único mito poético dessa geração que aí está, “mito”, aqui, no sentido originário de figura-síntese de uma idéia com força e valor coletivos. Arquétipo. Modelo. Forma-cristal. Para esta geração (como delimitá-la?). Torquato encarna um dos mitos mais caros da nossa gente: o mito do poeta morto jovem. Esse mito, de extração romântica, tem uma linhagem que começa no Werther de Goeth, passa por Musset, Nerval, , entre nós, por Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, os “prematuros desaparecidos”, em contraposição às próperas longevidades de um Drummond, por exemplo.

Esse mito, certamente, é um pálido reflexo do mais profundo mito do mundo mediterrâneo e, por extensão, do ocidente: o de um deus jovem, que dá a vida pelos que nela crêem: Adônia, Osíris, Jesus. Essa idéia para um chinês, um japonês, um oriental, um budista, é perfeitamente absurda.

“Credo quia absurdum”.

Nós todos acreditamos em Torquato.

Afinal, a auto-imolação não é gesto ao alcance de qualquer um.

A vida de Torquato Neto não interessa. Não interessa a vida de ninguém. Eu não aceito esse ponto de vista. Acho até que, em certos poetas, o desenho da vida pode ser um poema. Não se escreve só com palavras. Grava-se com o corpo, o gesto, a atitude. O comportamento, sartreanamente, com as escolhas globais.
Tem poetas nos quais importam, também, a peripécia contextual que cerca seu fazer e seus feitos: a gesta total, o ser-signo inteiro.

O que se sabe de Torquato: um poeta de província (Piauí? Goiás? Santa Catarina?), um dos letristas da Tropicália, suicidou-se, parece. Pouco se sabe de Torquato. Felizmente. Mito que se preza não tem biografia. As biografias têm a irritante mania de reconduzir os mitos das suas rarefeitas altitudes para as platitudes da humana condição. Vai ver, no fundo, Torquato era pessoa como qualquer um de nós, esse Qualquer Um de Nós que pena atrás da grana, engole cara feia de patrão e exulta, como os escravos, no dia da distribuição dos pães; Conhece “aquela pessoa”. Deixa traços de sua passagem. E passa.

Ainda brilha o dia tropicalista, que raiou na poesia brasileira, nos idos de 68. Foi a época em que nós todos começamos a nos tratar de loucos. Até ali, loucura era insulto.

Nós desfraldamos a loucura como o fervor de quem empunha uma bandeira. Feudianos, a loucura foi igual para todos. Mais alguns foram mais loucos que os outros. Não há democracia no reino da loucura. Torquato foi um príncipe da loucura, um Ludwig da Baviera no Posto Seis. E lá estava Torquato nos alvores do dia tropicáustico, tropicalmo, as mãos cheias de versos, frases claras, frases raras, armas, araras. Torquato marca uma mudança radical, um salto qualitativo, na história disso que se chama, na falta de termo melhor, poesia brasileira.

Poesia que, hoje, não apenas se lê nos livros, mas se escuta nas canções, nos discos, nos rádios, na TV, na vida, enfim.

Torquato tem muito que ver com isso.

O seqüestro da poesia pela literatura foi longo como o seqüestro dos diplomatas norte-amercianos pelos iranianos do Aiatolá Khomeini. No Brasil, foi o tropicalismo quem a libertou.

Com esse des-movimento (que cuidou do próprio enterro, encenado na TV, pelas suas principais estrelas), irrompem na cena brasileira, como é de conhecimento de todos os leitores do “Folhetim”, poetas de primeiríssima ordem, se expressando, não em livros mas em discos. Bota Chico Buarque nisso. 

Absolutamente, Caetano, e seus companheiros, Gil, a seguir, Capinan, Tom Zé, o que a gente tem vontade de acrescentar, tudo de melhor que, em letra veio algo depois: Galvão, dos Novos Baianos, Waly sailormoon, Duda Machado, todos letristas do período imediatamente pós-tropicália.

Porque, com Torquato, começa a existir essa estranha estirpe de poetas: os letristas. Patrulhas dos mandarins das Belas Letras gostariam de lhes negar até o pretigioso título de poetas. E relegar a poesia da letra de música ao sub-solo da subliteratura. 

A poesia da letra de música seria fácil, carregada de redundância e banalidade, laborando sobre sentimentos elementares, girando em torno de meia dúzia de situações prototípicas: boy meets girl, que bom, ela me ama, azar, ela não me ama mais, como era bom quando ela me amava, quem me dera uma paisagem assim e assado para transar com meu amor, as venturas e desventuras daquele amor romântico, inventado pelos trovadores provençais, os antepassados diante dos músicos-poetas do mundo pop.

Só que a arte desses trovadores provençais (Arnaut Daniel, por exemplo) em nível de palavra é de teor tal, que coloca alguns deles entre os mais altos criadores da lírica de todas as épocas. Com ou sem música.
Dias atrás, li, numa das principais revistas brasileirasm a resenha de um disco de Chico Buarque, na qual o comentarista falava da poesia de Caetano, botando a palavra “poesia” entre aspas, acrescentando ainda um “digamos”, a “poesia” de Caetano. A questão é saber: mantemos ou tiramos as aspas, quando falarmos da poesia (ou da “poesia”) dos letristas e poetas-músicos? 

A geração à qual Torquato pertence, Caetano à proa, respondeu, criativamente, inundando o País com letras e canções de tamanha estatura poética que fica difícil achar paralelos na poesia escrita do mesmo período. Os mandarins vão ter que dormir com essa.

Mas a hostilidade dos mandarins, guardiães da coroa de louros de Apolo, provocou o excesso contrário: o menosprezo pela poesia escrita que, de Guttemberg à poesia de vanguarda, tem quinhentos anos de evolução autônoma especialidade, diante da poesia da letra de música.

A poesia escrita é uma criação da imprensa Guttenberguiana. Afinal, até o soneto foi feito, no início, para ser cantado. “Soneto” é, em italiano, um “sonzinho”. 

Mas a métrica, na poesia escrita, não se explica, se esquecermos que a poesia, nas origens, era “words set to music”, palavras para cantar. A ponto de Ezra Pound, poeta e músico, advertir que a poesia decai, quando passa muito tempo afastado da música, sua matriz e destino.

No Brasil, dos anos 60 para cá, a poesia cantada e a escrita tem dialogando de modo fecundo, em inúmeros momentos. Basta invocar os conhecidos contactos, por exemplo, entre Caetano & Gil e a poesia concreta paulista (Caetano, em “Sampa”, introduz, na música popular, a própria expressão “poesia concreta”). Ou entre a poesia de Chico Buarque e as de Drummond e João Cabral. A essas influências da poesia escrita, acrescentou-se, nos anos 60, a da poesia de Oswald de Andrade & Antropofagia, ressuscitada por reedições e encenações de peças.

A mais conhecida das letras de Torquato, “Geléia Geral” (o nome foi emprestado por Torquato de Décio Pignatari, que cunhou a expressão no editorial de uma revista “Invenção”) é oswaldiana até a medula. No ufanismo irônico. Na enumeração Kitsch-caótica das “relíquias do Brasil”. A mesma dança, ano que vem, mês que foi. A marca oswaldantropofágica, porém, está na própria linguagem de “Geléia Geral”: na técnica de cortes, de flashes, de montagens cinematográficas, de rimas trocadilho (inicia / anuncia), de malandragens verbais.

”Geléia Geral” traz estes dois versos: “resplandente cadente fagueira num calor girassol com alegria”. Percebe-se que a cafona palavra “fagueira” vira “fogueira”, quando você ouve / lê o ígneo verso seguinte. E esse cadente se transforma num incandescente candente. Alta era a arte de Torquato, poeta das elípses desconcertantes, dos inesperados curto-circuitos, mestre da sintaxe descontínua, que caracteriza a modernidade.

Jovens poetas do Brasil, quem não fez um poema em homenagem a Torquato, atire a primeira estrofe.
A morte de Torquato foi um grande poema, suicídio, a performance máxima. A destruição da vida para a transformação em mito, com nas “Metamorfoses” de Ovídio, onde os personagens morrem só para se transmutar em constelações, em estrelas.

A garotada pegou o recanto.

Torquato é meio-deus para vários poetas jovens que eu conheço. O modelo de sua vida integralmente dada à experiência poética, no fundo, a “trip” do barco bêbado do Rei Arthur, Arthur Rimbaud. Um grande sábio um dia disse que o signo é a morte da vida. Mas, sem signo, vida degradada, a vida não dura. A vida é curta, o signo é longo.

Como Buda, Confúcio, Sócrates ou Jesus, Torquato não deixou livros. O Livro de Torquato é esse “Os Últimos Dias de Paupéria”, muito bem editado por Waly Sailormoon, vitrina dos vários possíveis de Torquato: em letra, poesia escrita, ensaios jornalísticos, fragmentos de diário, retrato estilhaço de um poeta por outro poeta.

Essa – digamos – precariedade do “corpus torquatiano” “para falar como os mandarins é um fato de mistério: a incompletude, a obra aberta, o poder ser. Talvez, por isso, Torquato tenha influenciado tanto.
Isso que se chama, imprecisamente, de “poesia marginal” o invoca entre os santos do seu panteão, quando não como “heros ktistes”, deus fundador. Morto aos 28 anos, Torquato deixou fragmentos, “rari nantes in gurgite vasto”, “disjecta membra”, cacos de uma explosão nuclearéxistencial. Mas a realidade, aí, foi de uma grande elegância e precisão. Atingido em cheio pela bomba da modenridade, Torquato dispersou-se em microepifanias, letras, poemas, textos de jornal. O que só aumenta seu pretígio numinal diante de uma geração televisiva, marshal-mclunaniana, descontínua, paratática.

A flor que foi cortada antes do tempo é emblema de todas as virtualidades. Torquato é a divindade que, na poesia brasileira, preside o poder-ser.

Se Torquato é o mártir auto-imolado da poesia cantada brasileira, Mário Faustino é seu desastrado (”hecatombado”) equivalente, na área escrita. Desaparecido em desastre aéreo, Faustino deixou atrás de si o perfume de uma militância poética, que teve seu auge no Caderno B do “Jornal do Brasil”, na época de Reynaldo Jardim, quando Mário, diretor, abriu espaços e tempos para o que de mais radical se fez e fazia. Aberto tanto para o melhor passado quanto para o mais agudo presente, o suplemento de Faustino foi um momento histórico.

Poundiao, Mário Faustino imprimiu ao Caderno B do JB uma diretriz clara, seletiva, paideumática, a única que tem “virtú” para atuar como agente de transformação da cultura: escolhas radicais, a partir de critérios precisos. Como poeta, “último verse-maker”, como o chamou um companheiro de geração, Faustino deixou uma produção incompleta e fragmentária, sílabas para uma palavra que se ia chamar “O Homem e Sua Hora”, macropoema, ao molde dos “Cantos” de Pound, que deveria sintetizar a experiência vital do poeta num todo significante.

Contemporâneos, em alguns aspectos, Faustino é o oposto de Torquato. Torquato é popular, “reles”, pop, para tocar no rádio, sermo plebeius. Faustino é “sermo nobilis”. aristocratizante, altamente letrado, cheio de laivos da geração de 45 (helenismos, palavras raras, preciosismos da expressão, anticoloquialismo). Na poesia Provença medieval, distinguia-se entre um “trobar léu” um “trobar ric” e um “trobar clus”, o poetar leve, o poetar rico e o poeta escuro.

O “trobar léu”, o poeta leve, era o mais parecido com isso que, hoje, é normal na letra da música popular: o verso fluente, fácil de entender, pop. (ver os trovadores Marcabru, Guilhaum de Peitau, Peire Vidal). Palavras solenes e sintaxe elevada, o “trobar ric”. “Clus” era o “trobar” difícil, não acessível à primeira audição, seja pela complexidade da “metaphysical” idéia ou pelo abstruso da imagem, da alusão, pela raridade da palavra ou pela extrema arquitetura musical do edifício verbal da letra (Arnaut Daniel). Nessa lógica “trovençal”, Faustino pratica um “trobar ric”, com ocasiões de “clus”.

Torquato é “léu” e, às vezes, “clus”. A co-existência dessas diferenças entre dois grandes poetas contemporâneos deve ser altamente didática para todos aqueles que querem reduzir a poesia a um só momento, a um só “trobar”.

Em passado “Folhetim”, num ensaio “Forma é Poder”, denunciei a suposta “objetividade” da linguagem jornalística, mostrando como esse efeito é precipitado de uma codificação de linguagem, uma cristalização canônicas de recursos que, estabilizando o discurso, transmita a sensação de “realidade”. Jornalismo não tem “estilo”. Ora, o que há no mundo da inteligência são as especificidades de cada consciência. Todas as cabeças são “estilos”.

A linguagem jornalística é imposta por uma autoridade: um Poder. Mas pode-se dinamitar essa tirania: por dentro, na linguagem. De pronto, lembro três momentos: os jornalismos de Oswald de Andrade, de seu herdeiro, Paulo Francis, e de Torquato. Na coluna que, longo tempo, manteve no jornal. “Última Hora”, Torquato praticou, em nível de massas, a mais ágil das linguagens: esplendidamente “subjetiva”, descontínua, ideogrâmica, blocos carregados de eletricidade, movida a elipses, elípse, a figura-mestra de Torquato, conduzida até a elíptica apoteose de auto-eliminação final, o efeito da Falta.

Não exagero ao dizer que Torquato criou um padrão de jornalismo cultural. Um padrão baseado na extrema criatividade de linguagem. Na hibridização dos discursos: poética, factual, materiais nobres x pobres. Esse jornalismo torquatiano estava a serviço de uma causa, a promoção do super-oito e do cinema marginal, periférico às glórias e consagrações do Cinema Novo, em vias de academização, comercialização e caretice. Breve nas telas deste cinema. Torquato Neto.

Não diz pouco da grandeza do poeta Torquato dizer que sua última grande preocupação foi o cinema, essa arte não-verbal, mas síntese de todas as artes, destino das artes, conforme Eisenstein: destinação do verbal, do gestual, do visual, num só ponto-ômega.

Poesia é ação entre códigos: todo poeta é intersemiótico. É Pound, músico e poeta. Maiakovski: poeta e artísta plástico. 

Em termos de Brasil século 20, são conhecidas as relações entre Oswald, Murilo e Cabral e as artes plásticas. Ou as tangências e secâncias entre Bandeira e Vinícius e a música. E “concreta” era a pintura, antes da poesia. O poeta não é um escritor: é um artista.

Tímido Nosferatu na calçada de Copacabana, Torquato perfez o fadário de todo vampiro que se preza, a sina dos “un dead”.

Mais conciso que o bilhete final de Maiakovski, o de Torquato diz tudo. Diz quando a vida pode ficar pesada nas mãos de uma criança.


*PAULO LEMINSKI é poeta e compositor, autor de “Catatau” e “Verdura”. Jornal Folha de São Paulo, Folhetim, 7.11.1982.

Texto retirado do blog Torto

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O blog "Torquateando"

Esse blog, no inicio, foi criado com a intenção de colocar aqui tudo sobre Torquato Neto. O que foi escrito por ele e o que foi escrito sobre ele. O blog ainda continua com essa intenção, mas que agora sem o Agostinho para me ajudar. Ele não quis mais. Desculpem pela demora dos post's, mas porque só agora tive tempo.

Então vamos Torquatiar.